Public Universal Friend: Religiosidade e revolução na identidade de gênero no século XVIII

(Representação visual gerada pela IA Midjourney)

Se ainda hoje os debates em torno das diversidades de identidades de gênero transcorrem envolvidos em polêmicas,  no século XVIII as fronteiras entre o masculino e o feminino eram basicamente incontestáveis. Mas em 1776 alguém decidiu romper com o binarismo e redefinir sua posição, adotando até um inusitado e representativo nome, assim a a mulher nascida como Jemima Wilkinson passou a ser Public Universal Friend, uma pessoa sem gênero. 

Jemima Wilkinson nasceu em 1752 no estado de Rhode Island, EUA, em uma família de quakers, cristãos que adotavam a vida comunitária de hábitos simples, igualitários, pacifistas e com base no princípio de que a experiência espiritual é direta, sem a intervenção de sacerdotes ou estruturas de instituições religiosas. Em suas buscas espirituais, Jemima aderiu a um movimento chamado Primeiro Grande Despertar através de um grupo que ensinava que qualquer pessoa poderia se comunicar diretamente dom Deus e este princípio foi muito importante para o desenvolvimento de suas crenças. Em 1776 uma grave doença se abateu sobre ela, que passou dias sob os efeitos de uma febre intensa e delirante. Depois de se recuperar, concluiu que morreu e reviveu por ação milagrosa, renascendo a partir de então não como Jemima, mas como um ser diferente enviado por Deus para cumprir a missão de transmitir um valioso ensinamento. 

Seu nome passou a ser Public Universal Friend, escolha que tinha significados marcantes. Era deliberadamente neutro, diferentemente de um nome pessoal caracteristicamente masculino ou feminino, pois seu novo nome era composto por dois adjetivos e um substantivo que em inglês não variam conforme o gênero, o que atendia a sua declaração de que também passou a não ter mais uma definição a respeito de sua condição como mulher ou como homem, era a partir de então uma pessoa que transcendia a tal diferenciação porque simplesmente não se enquadrava mais em gêneros. O novo nome também enfatizava sua missão espiritual e não era uma identificação convencional, além de simbolizar que a pessoa que o adotava representava algo especial.

Public Universal Friend se apresentava diante das pessoas usando trajes que não eram identificados como roupas masculinas ou femininas, adotando um visual andrógino. Sua mensagem enfatizava a preparação para o Juízo Final, anunciando que o fim dos tempos estava próximo. Sua pregação afirmava que qualquer um poderia alcançar a salvação, não existindo predestinação nem escolhidos por Deus. Sobre aspectos da vida terrena, Public Universal Friend defendia claramente a abolição da escravidão, a igualdade social, o celibato como condição ideal e era contra a submissão das mulheres perante o domínio masculino. Sua apresentação diante dos fieis eram marcantes, pois possuía incríveis qualidades carismáticas que atraíam seguidores e formavam comunidades organizadas em torno da Sociedade dos Amigos Universais em diferentes localidades. 

As ideias de Public Universal Friend também mobilizaram críticas e oposições. A sede da sociedade chegou a ser atacada por opositores, adeptos e principalmente sua liderança foram alvos de hostilidades, questionaram a sanidade mental das pessoas envolvidas e não faltavam acusações por parte de representantes de outras religiões que condenaram o movimento como uma heresia.

Apesar das adversidades, a Sociedade dos Amigos Universais era resistente e conseguiu manter-se firme enquanto Public Universal Friend condizia sua comunidade, o que continuou a fazer até meados de 1819, quando morreu aos 66 anos de idade. Sem a figura central e referência das comunidades de fiéis, a continuidade da obra e propagação dos ensinamentos foram prejudicadas. O movimento espiritual era muito dependente do carisma e atração que sua guia exercia e a sucessão não foi uma questão previamente resolvida, fato que resultou em divergências entre os seguidores. Houve disputa em torno do controle sobre propriedades administradas pela Sociedade dos Amigos Universais, que passou a minguar por causa da dispersão de simpatizantes, pela redução da capacidade de atração de novos adeptos e pela perda de resistência diante das pressões vindas de fora da comunidade. Os princípios enfatizados através das pregações iniciadas por Public Universal Friend também foram deixando de ser atrativos diante do contexto de transformações da sociedade dos EUA. A combinação de tantos problemas acabou implicando na ruína desta interessante experiência mística com propostas ousadas e perspectivas inovadoras.

Além das propostas sociais e concepções místicas, Public Universal Friend antecipou aspectos marcantes a respeito da manifestação da inconformidade de gênero através da adoção de sua maneira de se distanciar do binarismo, recusando igualmente ser mulher e ser homem. Também recorreu a uma inovadora expressão desta vivência ao empregar referência e linguagem neutra, recurso que suscita acaloradas discussões atualmente. 


Referências: