Chevalier d’Éon: Entre espionagem, lutas e reconhecimento de gênero no século XVIII

(Representação visual gerada pela IA Leonardo)

Charles de Beaumont, mais conhecido como Chevalier d’Éon, é uma figura singular do século XVIII, tendo uma trajetória de vida repleta de situações e condições desafiadoras. Fez carreira na diplomacia e na espionagem, foi esgrimista de altíssimas habilidades, militar condecorado, cavaleiro real, participante ativo de círculos intelectuais e literários e mesmo assim sua identidade de gênero se tornou objeto de especulação e julgamentos alheios.

Nascido Charles Geneviève Louis Auguste André Timothée d’Éon de Beaumont em 1728 na cidade de Tonnerre, França, filho de uma família de posses, formou-se em direto com altas distinções acadêmicas no prestigiado Collège Mazarin em Paris e em seguida ingressou no corpo diplomático francês. 

Certa vez fez uma irreverente aparição num baile da corte vestido de mulher e apresentando a convincente desenvoltura de uma verdadeira dama. O fato de ter conseguido confundir tantas pessoas de só uma vez a respeito de sua identidade acabou fazendo com que fosse recrutado para atuar no serviço secreto montado pelo rei Luís XV. Sua primeira missão como espião foi na Rússia, sendo designado oficialmente como diplomata, porém com o objetivo de obter informações sobre a disposição russa a respeito da possibilidade de formar uma aliança estratégica contra a Inglaterra e a Prússia. Para cumprir seu propósito foi necessário sua infiltração em diversos grupos e ambientes, conquistando a confiança de interlocutores desavisados que eventualmente revelariam mais do que deveriam. O espião francês adotou a abordagem de alternar suas aparições entre sua identidade oficial como Charles de Beaumont ou assumindo o papel da suposta irmã chamada Lia de Beaumont. A trama diplomática promovida pelo governo francês foi exitosa com a preciosa contribuição de sua habilidade.

Quando voltou da Rússia serviu como oficial durante a Guerra dos Sete Anos, tendo uma atuação irrepreensível e elogiada, sendo reconhecido em 1761 pela concessão do título “Chevalier” (“Cavaleiro”) e o direito a uma pensão vitalícia por parte do rei. Depois disso, Chevalier d’Éon foi destacado para um novo posto, dessa vez em Londres, onde mais uma vez atuou como diplomata e agente secreto. Na Inglaterra também se destacou em concorridas apresentações de esgrima, demonstrando incrível perícia e uma técnica excepcional, fascinando o público admirador do esporte de cavalheiros. Na mesma época sua carreira diplomática foi afetada por divergências com seu superior, o embaixador francês na Inglaterra, levando d’Éon a publicar correspondências secretas como retaliação e precisar viver no exílio por causa disso. 

Enquanto estava servindo na Inglaterra, d’Éon passou a usar roupas, penteados e maquiagem femininas mesmo fora das missões de espionagem, assumindo cada vez mais sua identidade de gênero. Especulações sobre sua sexualidade já eram feitas por terceiros desde antes dessa fase através de variadas manifestações, mas quando seu retorno para a França e perdão foram negociados com o rei Luís XVI, em 1775, ficou acertado ainda o seu reconhecimento oficial como mulher, ocasião em que adotou para si o nome Chevalière d’Éon (sendo “Chevalière” o feminino de “Chevalier”). 

De volta ao seu país, as polêmicas em torno de sua vida continuaram intensas e um duro processo de assédio difamatório ocorreu por meio da divulgação de publicações maliciosas, caricaturas, sátiras, realização de desafios públicos e apostas a respeito de seu “gênero natural”. O falatório sobre Chevalière d’Éon a acusava de promiscuidade, práticas sexuais escandalosas, frequência rotineira nos bordeis e questionavam sua moralidade, honestidade e respeito ao país, cobrando que sua intimidade fosse exposta e exigindo investigações sobre sua conduta. Ela teve que lidar com pressões invasivas, preconceituosas, grosseiras e persistentes, mas outros problemas surgiram quando estourou a Revolução Francesa, pois sua pensão foi cortada e perdeu a renda que assegurava seu sustento. Anos de mais pobreza e discriminação se seguiram até sua morte, em maio de 1810, aos 71 anos de idade.

O corpo de Chevalière d’Éon foi examinado numa autópsia como forma de continuar a contestar sua identidade de gênero e o resultado foi a negação de sua feminilidade, pois a identificação da genitália masculina bastou para sentenciar sua sexualidade. Na época não eram considerados os fatores subjetivos nem a experiência individual para a categorização de gênero, sendo imperativos os aspectos biológicos e o peso da moralidade e dos preceitos religiosos que estabeleciam as percepções sociais, culturais e normativas. 

A história de d’Éon evidencia que as questões de não conformidade de gênero são históricas, existentes muito antes das reflexões contemporâneas a respeito da complexidade a respeito da fluidez e diversidade das identidades. Demonstra ainda que a persistência no conceito binário a respeito de gêneros é uma condição imposta sem a disposição de reconhecimento das vivências e sentimentos individuais das pessoas trans.


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