São Juliano, o Hospitalário: Profecia, tragédia e redenção em uma lendária narrativa medieval

(Representação visual gerada pelas IAs DALL-E e Leonardo)

A hagiologia, estudo sobre os santos na tradição católica, tem em seu desdobramento uma farta produção de biografias (hagiografia) que remontam ao início do cristianismo e Idade Média que frequentemente possuem menos preocupação com detalhes históricos e mais com a trajetória espiritual e religiosa das figuras sagradas descritas. Esta literatura hagiográfica difundia ensinamentos, exemplos de virtude e devoção e davam visibilidade a comunidades que adotavam suas próprias histórias sobre pessoas santificadas, o que atraía fiéis e peregrinos. O público se encantava com as narrativas cheias de demonstrações de entrega espiritual, heroísmo em torno da fé, virtudes elevadas e atos sobrenaturais miraculosos, mas certamente muitas dessas vidas extraordinárias reuniam elementos repletos de lendas e situações fantasiosas.

Era comum que comunidades cristãs reconhecessem pessoas como santas por aclamação popular mesmo sem qualquer oficialização formal da própria Igreja Católica, que tinha seus critérios para conceder esta distinção mesmo antes da instituição dos processos de canonização.

Uma destas figuras santificadas e veneradas pela tradição popular e não pela instituição oficial é São Juliano, o Hospitalário, cuja história é muito amparada em aspectos lendários e elementos que foram incorporados ao longo dos anos. A história do santo é dramática, remontando ao início do século IV, mas sem identificar com precisão onde os fatos se desenvolveram. Conta-se que o menino de uma família da nobreza foi citado em uma profecia que afirmava que ele estava amaldiçoado e que mataria os próprios pais. A preocupação com o cumprimento desse desfecho tão medonho motivou a providência do afastamento da família, decisão que o próprio Juliano, ainda criança, tomou para preservar seu pais de um fim inaceitável. Ele foi embora para um lugar muito longe, onde nunca mais teria contato com a mãe e o pai na esperança de que a distância e o isolamento evitassem o cumprimento profético.

Anos se passaram e Juliano tornou-se um homem, casou e constituiu sua própria família longe de sua terra de origem. Seus pais, apesar de tudo, resolveram partir em busca do filho afastado e viajaram por diversos lugares tentando saber do paradeiro de Juliano. Durante essa jornada passaram exatamente na casa do filho sem saber. Ele não estava na ocasião porque foi caçar e sua esposa não conhecia sua história, mas se comoveu com a situação do casal de visitantes e ofereceu abrigo e acolhida em seu quarto para que passassem a noite. Juliano voltou para casa durante a madrugada e se deparou com pessoas dormindo em seu próprio leito. Ele não foi capaz de identificar as pessoas, mas concluiu que estava diante de uma traição da esposa. Tomado por uma fúria incontrolável, golpeou o casal com sua espada e acabou matando os pais sem saber. O destino ignorou as providências para evitar que Juliano e os pais se reencontrassem e a tragédia acabou sendo inevitável da forma mais improvável através de um mal-entendido fatal.

Depois de perceber que as vítimas de seu ato violento impensado eram seus pais, Juliano ficou transtornado com a confirmação da maldição. Ele foi dominado pela culpa e pelo remorso e resolveu compensar o malfeito através de uma diligente penitência realizada por meio da caridade e assistência aos necessitados. Depois de peregrinar até Roma em busca de redenção, ele estabeleceu um abrigo para doentes e viajantes na margem de um rio, onde também trabalhou como barqueiro atravessando diariamente quem precisasse seguir viagem para a outra margem. Ele acabou sendo conhecido como Juliano, o Hospitalário.

A falta de evidências e referências em sua história faz com que sua existência seja basicamente reconhecida como lendária. No decorrer da Idade Média a narrativa começou a ser difundida e popularizada através de coletâneas hagiográficas. Diversos peregrinos religiosos citavam a figura do Hospitalário em suas jornadas, ajudando a tornar o santo popular conhecido e admitido pelos fiéis como padroeiro dos barqueiros, dos viajantes e até dos criminosos arrependidos.


Referências: