As 16 datas que mudaram o mundo: 4- A COROAÇÃO DE CARLOS MAGNO

Pierre Miquel (1930-2007)
Por Pierre Miquel (1930-2007) - Historiador francês

O antes de 800 é na Europa a anarquia de reinos impotentes diante das novas invasões bárbaras, da ameaça árabe sempre presente, de um papado ameaçado pelos bárbaros dentro de seu território.

O após 800 é a Europa civilizada pelo cristianismo, expandida em direção ao norte e a leste, livre da influência do Islã ao sul. Sob o abrigo das marcas de Carlos Magno, ela pode se considerar e se dizer reunificada: a idéia de um império renasce no Ocidente, graças à coroação de Carlos, o Grande, pela única autoridade espiritual que sobreviveu ao antigo império romano. Essa reconstituição da Europa do Noroeste é o prenúncio da imagem de uma Europa unida.

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O papado romano não está no auge de seu poder quando pede socorro a Karl der Grosse, ou seja, Carlos Magno. O papa Adriano I deve somente ao rei franco a sua salvação. Desidério, rei dos lombardos, ameaça Roma. Em 774, Carlos e seus guerreiros francos intervêm na Itália, derrotam Desidério, destruindo a monarquia lombarda. Carlos coloca a coroa de ferro dos reis bárbaros. Ele acaba de salvar o papado e de conceder-lhe alguns Estados. O papa torna-se o senhor de Imola, Ferrari, Bolonha, Sabina e do ducado de Benevento. Pode-se falar de Estados do papa, um soberano temporal e limitado no espaço.

Leão III, eleito em 795, torna-se logo um joguete dos partidos romanos. Ele não é ameaçado pelos lombardos, mas pelas intrigas da aristocracia da Cidade Eterna. Seus próprios sobrinhos contestam sua tiara. Ousam atacar o papa durante uma procissão. Este deve fugir, encontrar refúgio perto de Carlos Magno na Alemanha, em Paderborn. Leão III implora por proteção. Uma vez mais os guerreiros francos atravessam os Alpes: em 799, o papa é reposto pela força do ocupante cabeludo de língua germânica.

Quem são esses francos da Austrásia, vindos das regiões entre o Reno e o Mosa (a “Francia do leste”) e que se ocupam do papado como de um bem próprio? Apoiando o papa, Carlos Magno segue a política de seu pai Pepino, o Breve, que foi proclamado rei da nova dinastia carolíngia pelos nobres e sagrado por Estêvão II.

Para que não sejam contestados, os carolíngios necessitam da sagração, que é realizada somente pelo herdeiro dos imperadores de Roma, o papa. Eles aceitam, em troca de seus bons serviços, defender o papado que está na origem de seu poder real. A única legitimidade para um rei bárbaro é a coroação à moda romana, herança do império.

Uma família piedosa, a dos carolíngios: ela descende do bispo Arnoul, bispo de Metz, e de Pepino de Landen, chefe do palácio da Austrásia.

Entremos nos detalhes da genealogia, já que ela garante a partir de então a filiação das elites dirigentes. A principal fonte de poder não é mais a eleição pelos chefes ou pelo povo, nem ser erguido sobre um escudo pelos soldados, mas a família e sua descendência. A feudalidade já é uma força nos costumes reais.

O bispo Arnoul tinha um filho, Ansésigel. Este se casou com Begga, filha de Pepino de Landen. Juntos tiveram um filho, Pepino de Herstal, chefe do palácio da Austrásia, que anexou a França do Oeste ou Nêustria a seus domínios. A chefia do palácio tornando-se hereditária, o filho de Pepino, Carlos Martel, teve apoio suficiente para expulsar os muçulmanos em Poitiers, em 732 ou 733, e preservar assim o tesouro de Santa Radegonde.

Carlos Martel havia se aliado ao papa a quem prometera ajuda armada contra os lombardos. Seu filho e sucessor, Pepino, o Breve, tornou-se por sua vez um devotado protetor do papa. Ele interveio duas vezes na Itália contra os lombardos, em 754 e 756, e recebeu o cobiçado título de “patrício dos romanos”.

O papa outorgava-se o direito de dispor dos títulos do antigo império romano. Ele era em Roma o herdeiro do imperador, na medida em que a antiga administração permanecia em suas mãos. O pontificado fazia do pontífice um herdeiro distante de Augusto. Ele tinha o poder de romanizar os bárbaros. O título de “patrício” dava acesso ao que subsistia de romanidade.

Pepino, o Breve, já era um servidor da Igreja. Tendo estabelecido a ordem entre os bispos das Gálias, havia se embrenhado nas florestas germânicas a leste do Reno, empurrando os saxões pagãos até o Weser. Ele havia dominado o rei da Baviera, Tassilão, que se tornou seu vassalo e fizera-se então o senhor dos vastos territórios alemães.

Ele considerava também como dever seu afirmar o poder franco ao sul, recusar a secessão na Aquitânia e intervir contra os muçulmanos que haviam se transformado nos senhores de Nimes e de Narbona. Numerosas campanhas serão necessárias para reconquistar Narbona e a província de Septimania para a Cristandade.

Em todos os campos, Pepino, o Breve, tinha traçado o caminho para seu filho Carlos Magno. Desse ponto de vista, o antes de 800 estava singularmente de acordo com a política retomada por Carlos Magno imperador. Ele não mudaria nada.

O filho mais velho de Pepino, o Breve, e de Berta (dita “do pé grande”) tinha primeiramente dividido o reino franco de seu pai com seu irmão Carlomano, de acordo com o funesto costume franco. A morte oportuna deste último em 771 permitira a Carlos reinar sozinho e repudiar a filha do rei dos lombardos, Desidério, com quem ele havia se casado por razões diplomáticas. Carlos não queria se entender com os lombardos, mas esmagá-los.

Desde 773, ele organizava uma expedição. Uma vez Desidério derrotado em Pávia, Carlos apareceu como o salvador do papado. Apoderou-se da função do imperador de Bizâncio de defensor da Igreja e renovou a “doação de Pepino” que assegurava ao papa uma proteção completa e permanente, colocando-o no centro de um principado de Estados invioláveis, os Estados do Papa. Carlos tinha confirmado o poder temporal do pontífice.

Ele teve que desempenhar uma constante atividade guerreira para reduzir os particularismos dos senhores, tanto na Itália, onde os lombardos do sul se agitavam em Espoleta e em Benevento, quanto no sul da Gália, onde os aquitanos da língua dos recusavam o domínio desse germanófono.

Carlos julgou agradá-los dando-lhes como rei um de seus filhos, Luís I, o Piedoso, a quem os aquitanos teriam destruído de um só golpe, se ele não tivesse imposto às populações cristãs, por meio de bispos fortemente apoiados na política de Carlos, o Grande, e desejosos de servir com presteza, a política unitária do defensor do papado e da Igreja do Ocidente. No sul da Alemanha, o rei franco precisara colocar sob seu domínio, em 788, o duque da Baviera, Tassilão, um excelente católico que acreditava poder desfrutar de sua independência. Esmagada a Baviera.

Assim a coroação do ano 800 beneficiava-se já, há alguns anos, das benesses pelo seu apoio à Igreja em todos os seus Estados.

Carlos havia provado sua dedicação tomando em primeiro lugar a iniciativa de comandar uma incessante cruzada contra os não-cristãos e os infiéis. O reino de Carlos Magno implicava um estado de permanente cruzada na Europa. O cristianismo não queria mais conquistar, como o Islã, mas converter, se necessário pela força das armas. Os repetidos avanços do exército dos francos nas florestas germânicas não tinham outro objetivo. Arrasando as vilas saxãs, eles pretendiam obrigar os habitantes a abraçar pela força a fé cristã.

Nas planícies pantanosas do Elba e do baixo Reno, a presença dos saxões podia ser ameaçadora. Eles eram perpétuos candidatos a invasores das terras francas. Carlos não havia hesitado a se arriscar em seus acampamentos em 722 e a destruir seus ídolos, suas estátuas e seus objetos de culto pagão. No rio Weser, ele havia exigido que reféns fossem entregues, assegurando a docilidade das populações e a conversão destas ao cristianismo. Em 775, o exército dos francos havia novamente reaparecido. Carlos decididamente queria ocupar permanentemente os vilarejos saxões cristianizados pela força. A evangelização caminhava junto com a conquista.

Em 778, um chefe saxão começou a resistência. Wittikind derrotou várias vezes o exército de Carlos, principalmente no monte Sunthal em 882. Furioso, o rei dos francos ordenou o massacre de quatro mil e quinhentos reféns em Verden (Saxe) em 782. Três anos mais tarde, ele obtinha do vencido chefe Wittikind sua conversão ao cristianismo.

Os saxões não tinham o menor interesse pela religião de Roma e dos papas e pretendiam continuar adorando seus deuses de madeira, as forças da natureza e dos rios. Karl der Grosse julgou necessário, em 799, deportar em massa um povo tão indócil. Ele não teve necessidade de utilizar meios tão extremos, tão em desacordo com os princípios da religião de Cristo, contra os habitantes da Frísia que se submeteram em 785, nem contra os avaros vindos do Danúbio, facilmente reduzidos à obediência.

Carlos, o Cruzado, decidiu intervir na Espanha contra o emir de Córdoba, apoiando contra este as revoltas dos pequenos chefes sarracenos: foi um grande erro. Em 778, na cabeceira do Ronce-vaux, a retaguarda de seu exército é surpreendida pelos montanheses bascos, e Roland sucumbe. Compreendendo que não possui meios para atacar a poderosa base do Islã na Espanha, ele se contentará em tomar as fronteiras do norte: Gerona, na Catalunha, e os vilarejos fortificados de Navarra.

Renovando as táticas dos romanos, ele cerca suas possessões de fronteiras armadas, as marcas: na Dinamarca, no Elba, na Áustria contra os avaros, no Frioul contra os croatas, na Espanha e na Bretanha.

A apoteose dessa política de restauração e de conversão forçada será a cerimônia de Natal em 800 na basílica de Roma. Karl der Grosse é imperador do Ocidente.

A conseqüência imediata da sagração foi o questionamento do império do Oriente. Carlos seria o único imperador pela união com a imperatriz Irene? O Oriente resistia. Carlos teve de ameaçá-lo, ocupar a Dalmácia e o Vêneto para que, em 812, o imperador Miguel consentisse em chamá-lo de “irmão”. Os dois impérios coabitaram. Mas o mais poderoso, o mais dinâmico, era o do Ocidente. Uma dupla delegação divina marcava a potência do imperador e a do papa, já que Carlos havia sido sagrado. Porém o papa tinha necessidade material do imperador para manter-se em Roma. Assim equilibravam-se os poderes.

Um potente movimento de união centrava a cristandade no Reno fazia entrar a Alemanha na comunidade ocidental dos povos cristãos, arrancava a Itália das garras bizantinas, organizava em torno do palácio de Aix-la-Chapelle um movimento de unificação política e de renascimento religioso e cultural. As escolas, os mestres vindos de todas as regiões asseguravam a difusão dessa cultura, fator de unidade para a Europa. Desse ponto de vista, Carlos Magno pôde passar como o ancestral mítico da Europa cristã.

Sua descendência não manteve as promessas de 800. Os filhos de Carlos disputaram o império entre eles, mas a divisão de Verdun, em 843, deu nascimento às duas nações da Francia oriental, as regiões alemãs de Luís, o Germânico, e a Francia ocidental, as terras romanas de Carlos, o Calvo: entre as duas, a faixa contínua de Lotário, indo do Mar do Norte até a Itália, passando por Lorena, Alsácia e Provença, a Lotaríngia, terra do Império, nas mãos do herdeiro do título. A geografia da divisão desenhava a futura Europa das nações.

A unidade dos reinos francos estava, no entanto, ameaçada pela prática medieval da criação de feudos, prática corrente entre os carolíngios. Os reis não tardariam em se confrontar com os poderosos senhores tornados autônomos em seus territórios, os condes, duques, mais abaixo os barões e os vidames, dentro de um sistema de distribuição de feudos, de terras, e dentro de uma hierarquização teórica de laços de vassalagem, ou seja, uma promessa de guerra permanente. A dinastia dos carolíngios havia primeiramente favorecido o avanço da Europa, antes de organizar sua decadência.

 

Pequena Cronologia

Antes do ano 800 – A chegada de Carlos ao poder

  • 687: Pepino de Herstal chefe do palácio da Austrásia (a França do leste, capital Metz) esmaga o exército dos francos neustrianos (França do oeste) em Tertry. Ele herda então os territórios francos, tanto do oeste como do leste.
  • 714: Seu filho, Carlos Martel, é por sua vez reconhecido como chefe do palácio de Nêustria e da Austrásia. Mas o vencedor dos árabes ainda não é rei.
  • 747: Aparecimento dos abácidas em Bagdá. As dinastias dominantes mudam praticamente na mesma época tanto no Oriente quanto no Ocidente. No mesmo ano, a ordem de São Bento é aceita: os monges beneditinos vão reforçar a cristandade.
  • 751: Pepino, o Breve, filho de Carlos Martel, depõe Childerico III, o último dos reis merovíngios. Ele se apodera então da coroa, sendo proclamado rei pelos chefes francos e seus correligionários em uma assembléia exclusiva de guerreiros. No mesmo ano, os lombardos tomam a cidade bizantina de Ravena.
  • 754: Para sacralizar seu poder e torná-lo incontestável, o rei franco se faz coroar e sagrar-se pelo papa Estevão II, no trono de São Pedro somente há dois anos. Os dois poderes se constituem quase que ao mesmo tempo. (Quando, na sua vez, Carlos Magno for sagrado, significará estabelecer essa legitimidade imperial e real que lhe vem do poder espiritual conferida pela sagração. Ele é o eleito de Deus, e, como tal, inviolável. Ele é ao mesmo tempo o herdeiro do imperador Augusto, mas também, segundo a tradição judaico-cristã, herdeiro do rei Davi ou de Salomão.)
  • 755: Chegada dos omíadas na Espanha. Uma poderosa dinastia instala-se nas portas da cristandade.
  • 759: Os francos conquistam Narbona, cidade ocupada pelos muçulmanos.
  • 764: Entrada de Pepino, o Breve, em Toulouse. O sul passa para o domínio franco.
  • 768: Ascensão de Carlos e de seu irmão Carlomano, com a morte de seu pai Pepino. Carlomano morre em 771, permitindo a Carlos reconstituir a unidade, não de direito, mas de fato, em torno do primogênito.
  • 774: Carlos Magno, rei dos lombardos, coloca a coroa de ferro e anexa então o Estado. A oposição lombarda será, a partir de então, somente esporádica. Carlos torna-se rei na Itália.
  • 779: Capitular de Herstal. As pessoas da Igreja que constituem a administração do rei colocam seu conhecimento a serviço deste para organizar solidamente o reino.
  • 794: Instalação definitiva de Carlos Magno em seu palácio de Aix-la-Chapelle.
  • 797: A imperatriz Irene toma o poder em Bizâncio. Ela será a interlocutora de Carlos Magno.
  • 798: Uma embaixada bizantina apresenta-se no palácio de Carlos Magno.
  • Natal de 800: Coroação em Roma.

 

Depois do ano 800

  • 802: Embaixada do califa de Bagdá em Aix-la-Chapelle. Criação das missi dominici, enviadas do imperador nas províncias. O juramento de fidelidade é imposto aos grandes titulares de cargos e de territórios.
  • 812: Embaixada do imperador de Bizâncio Miguel I. Acerto da questão do Oriente. Os dois impérios cristãos se reconhecem como iguais.
  • 813: Carlos Magno coroa imperador seu filho Luís.
  • 814: Morte de Carlos Magno.
  • 817: Luís, o Piedoso, filho e sucessor designado de Carlos Magno, divide o poder com seus três filhos, Lotário, Luís e Pepino. A sucessão não chega a um termo. O nascimento de Carlos, um quarto filho de Luís, nascido de um outro leito, questiona a divisão e provoca a revolta dos três primeiros filhos contra o pai.
  • 840: Morte de Luís, o Piedoso: os herdeiros entram em guerra.
  • 843: Divisão de Verdun entre Luís, o Germânico, Lotário, herdeiro do título imperial, e Carlos, o Calvo.
  • 855: Morte de Lotário. Sua herança esfacela-se. Seu filho Luís II recebe o título e a Itália. Carlos torna-se rei da Provença. Lotário II toma a antiga Austrásia, entre a Mosa e o Reno.
  • 869: Morte de Lotário II: a Lotaríngia austrasiana é dividida entre Carlos, o Calvo, que reina a oeste, e Luís, o germânico: esses dois soberanos são os verdadeiros herdeiros do império dividido de Carlos Magno.
  • 881: Se a oeste constitui-se uma nação francesa de língua romana, a parte alemã da herança é logo dividida com a morte de Luís. Divisão do reino de Luís, o Germânico. Carlomano torna-se rei da Baviera, Luís, rei de Saxe, e Carlos, dito o Gordo, portador do título imperial. Este, tornando-se rei da Francia, poderia pretender restaurar a unidade, se não dispusesse de um poder muito fraco.
  • 887: Carlos é deposto pelos grandes senhores da Germânia. Arnoul da Germânia, um de seus sobrinhos, torna-se rei sem descendentes. Com a morte do filho de Carlos, em 911, o trono germânico volta para Henrique I, o Passarinheiro, fundador de uma nova dinastia saxã, origem da futura nação alemã. Na França os carolíngios decadentes desaparecem com a morte de Luís V em 987, para deixar lugar a Hugo, conde de Paris e duque de França, iniciador da nova dinastia capetíngia. 1165: Canonização de Carlos Magno pelo papado agradecido e nostálgico do império cristão do Ocidente.

 

3 comentários

  1. essa pesquisa é muito boa para quem tah estudando esse assunto fala muito detalhadamente o periodo feudal

  2. vou fazer um seminario sobre a tentativa de organização germânica gostaria de ter mais informações obrigada.

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