Estabelecida em 1096, a exitosa Primeira Cruzada, resultou nas conquistas dos Estados Cruzados, domínios feudais governados por europeus em extensas regiões do Levante (território que atualmente corresponde à Síria, Líbano, Israel, Palestina e Jordânia). Inicialmente os cruzados conseguiram formar o Condado de Edessa (atual sudeste da Turquia), o Principado de Antioquia (no norte da Síria) e o Reino de Jerusalém, que era o mais relevante desses domínios porque atraiu um grande fluxo de peregrinação de cristãos.
Preservar a integridade da população europeia que migrava para as áreas conquistadas e assegurar a segurança de quem peregrinava para a Terra Santa virou uma questão importante porque os riscos durante a jornada eram relevantes. Além dos perigos de ataques realizados por bandoleiros e combatentes muçulmanos, o trajeto expunha os viajantes a doenças e outros desafios impostos pela natureza. Proteção e cuidados eram necessários, então o contexto favoreceu o surgimento de ordens que se tornaram relevantes.
A Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão, dos famosos Templários, surgiu em 1119 e conquistou o reconhecimento de força de vanguarda entre os cruzados e, embora extinta em 1312, sua reputação se perpetuou no imaginário através dos séculos. Fundada em 1099, a Ordem Soberana e Militar Hospitalária de São João de Jerusalém, mais conhecida como Hospitalários, inicialmente cumpriu a missão de prestação de assistência médica aos peregrinos e cruzados, mas tiveram um processo de evolução e influência continuada em variadas atribuições nos diferentes contextos de sua longa atuação que atinge o nosso tempo presente. Apesar da fama dos Templários, os Hospitalários foram institucionalmente mais bem-sucedidos por causa da capacidade adaptativa que demonstraram.
O surgimento dos Hospitalários está associado à fundação de um centro de assistência médica ligado ao Mosteiro de Santa Maria Latina, em Jerusalém. O hospital foi dedicado a São João Batista e foi organizado através de recursos providenciados por mercadores da República Marítima de Amalfi, na costa da Itália. O hospital prestava atendimentos aos peregrinos cristãos e não recusava socorro aos miçulmanos que recorressem aos seus serviços, servindo como uma instituição de caridade sem fins militares. O líder fundador da unidade assistencial foi o religioso Gerardo Tum, posteriormente canonizado como São Gerardo, que reuniu seguidores juramentados dedicados à prestação de socorro aos necessitados. A ordem foi oficializada pelo Papa Pascoal II como uma entidade dotada de autonomia sob a proteção da Igreja Católica e logo começou a progredir seguindo seu propósito assistencialista, fundando hospitais em rotas de peregrinação. Doadores ajudavam a sustentar os serviços, que se destacavam por práticas médicas avançadas para época, incluindo cuidados com a higiene, dieta planejada, uso de ervas medicinais vindas do Oriente. Os hospitais contavam com voluntários, ofereciam também cuidados espirituais através da atuação de clérigos e recebiam doentes rejeitados como os leprosos, que ficavam em alas exclusivas.
Com o passar dos anos, a operação dos serviços encontrou-se sob ameaças e a estrutura da ordem precisou se adaptar para garantir condições de autodefesa. Por volta de 1120, sob o comando do Grão-Mestre Raymond du Puy, os Hospitalários passaram a contar com reforço militar de cavaleiros recrutados para escoltar os irmãos e peregrinos e defender as instalações da ordem. Além dos hospitais, fortes também foram estabelecidos na Terra Santa e a organização armada foi inspirada nos Templários, que já eram bastante prestigiados pela disciplina militar, combatividade e devoção cristã. Com a nova configuração, os Hospitalários passaram a ser compostos pelos cavaleiros (nobres que compunham a elite guerreira e assumiam papeis de comando), pelos sargentos (plebeus que exerciam posições na infantaria), capelães (clérigos que cumpriam as funções espirituais), os irmãos serventes (que realizavam os serviços hospitalares e exerciam apoio logístico) e os comendadores (que eram os arrecadadores de recursos e patrocinadores que atuavam na Europa).
Depois de militarizada, a ordem passou a fazer parte das campanhas bélicas e a realizar alianças para a conquista de terras em regiões dominadas pelos islâmicos. Os combatentes hospitalários atuaram ao lado dos Templários na Batalha de Ascalon (1153) contra o Califado Fatímida do Egito, um exitoso cerco liderado pelo rei cristão Balduíno III na conquista de uma posição estratégica que assegurou o controle territorial cristão e poder do Reino de Jerusalém. Sob o reinado de Balduínio IV, o Rei Leproso, os cruzados hospitalários foram ativos na luta contra o sultão Saladino, participando de importantes confrontos ofensivos e defensivos, prestando serviço na luta armada e no socorro aos feridos. Os Hospitalários persistiram após a vitória de Saladino, concretizada em 1187, dedicando-se a garantir o controle de seus próprios castelos na Síria e Galileia e se sustentaram defensivamente enquanto continuaram promovendo seus serviços de assistência.
Foram novamente convocados para o combate ativo durante a Cruzada dos Reis liderada por Ricardo Coração de Leão, serviram na Sexta Cruzada sob o comando de Frederico II, mas os relacionamentos entre os cruzados eram difíceis. Ocorriam divergências estratégicas, diplomáticas, conflitos de interesse e rivalidades. Entre hospitalários e templários a situação era complexa, pois as duas ordens frequentemente se desentendiam, afetando a unidade entre os cristãos. As ordens competiam por recursos, benefícios e terras, além de disputarem por poder, prestígio e influência. As divergências frequentemente lançavam os dois grupos em posições opostas com incidentes de atritos entre seus integrantes. A dissolução dos Templários, após um desgastante processo envolvendo pressões do rei Filipe IV e do papado, acabou favorecendo os rivais, que herdaram parte do patrimônio da outra ordem e passaram a agir sem um competidor para a obtenção de doações.
A queda de Jerusalém e o confronto com os Mamelucos foram situações críticas para os cruzados. Os Hospitalários perderam suas fortalezas e terras, mas estavam lutando durante o cerco e a derrota de Acre, em 1291. Eles recuaram para o Chipe, região menos atrativa e estratégica que a Terra Santa, onde encontraram condições de sobrevivência para se reorganizar, embora submetidos aos reis Lusignan, que dominavam a região. O período de exílio durou até 1309, quando eles se lançaram em uma nova empreitada conquistadora sob o comando do Grão-Mestre Foulques de Villaret. O alvo escolhido foi o enfraquecido Império Bizantino em sua possessão na ilha de Rhodes.
Depois de conquistar Rhodes, os Hospitalários formaram um estado cruzado independente de natureza teocrática-militar que expandia o controle sobre outras ilhas próximas. Em Rhodes eles montaram um sofisticado sistema de defesa com castelos, fortificações dotadas de aparatos como fossos e baluartes para a artilharia. A ilha atraiu novos moradores que se juntaram aos nativos de origem grega, constituindo uma população variada composta. Além disso, Rhodes era frequentada por mercadores venezianos e genoveses e também recebia viajantes da nobreza da França, Itália e Espanha. A economia da região progrediu além das atividades agrícolas e produtoras de azeite e vinho, pois a navegação era outro segmento lucrativo através da prática do corso autorizada pelo papado contra navios otomanos e piratas berberes. Esta nova realidade motivou mais um processo de adaptação e os Hospitalários aprimoraram suas experiência náutica. Uma poderosa frota foi montada com embarcações para diferentes usos, como as galés armadas com canhões e movidas por remadores escravos ou prisioneiros, as naus para transporte de carga e tropas. A força combativa comandada pelos Hospitalários era considerável e se envolveu em campanhas e batalhas importantes ao lado de de seus aliados, enfrentando inclusive o poderio de soberanos como Tamerlão no Cerco de Esmina (1344).
Depois de consolidar o controle do Mar Egeu, a situação mudou quando o sultão otomano Suleiman, o Magnífico, assumiu a determinação de eliminar a ameaça cristã no Mediterrâneo. Ele montou uma esquadra impressionante para promover o desgastante Cerco de Rhodes (1522), que durou seis meses até a negociação de um acordo de rendição com salvo-conduto para que os Hospitalários pudessem sair para mais um exílio após uma derrota.
Após um período errante, em 1530, a ordem foi favorecida por Carlos V, rei da Espanha, da Sicília e imperador do Sacro Império Romano-Germânico, que cedeu Malta, Gozo e Trípoli (no atual Líbano) à Ordem em troca de um tributo simbólico de um falcão por ano. A doação representava a gratidão do soberano cristão pelos serviços prestados pela ordem à defesa da fé, mas as terras recebidas não eram muito favoráveis porque não eram ricas em recursos e desguarnecidas de meios de defesa. Os Hospitalários precisaram construir as estruturas fortificadas que viraram características de sua organização militar e logo Malta se transformou em uma verdadeira fortaleza.
Em 1565 a capacidade de resistência da ilha foi duramente testada durante o Cerco de Malta. Novamente sob ordens de Suleiman, outra esquadra integrada por um grande contingente de combates pressionou os Hospitalários compostos por um efetivo muito menor. Depois do desembarque, os soldados otomanos partiram para o ataque contra fortificações, conseguindo suplantar o Forte Elmo após intenso bombardeio e um embate no qual apenas 150 defensores conseguiram provocar mais de 6 mil baixas entre os invasores. A heróica resistência ajudou a retardar o avanço muçulmano. Isso deu tempo para que outras fortificações se preparassem para o que estava por vir. A população maltesa se uniu aos Hospitalários e as cidades de Birgu e Senglea resistiram aos ataques pela costa e por terra até a chegada de reforços espanhóis que, juntos, conseguiram impor uma importante derrota aos otomanos. Após a derrota, Malta foi reconstruída com a ajuda dos aliados que reconheceram o feito como uma importante ação “defensora da cristandade”. Os Hospitalários voltaram a construir suas engenhosas fortificações, montaram uma nova esquadra e retomaram os ataques marinhos aos navios muçulmanos.
Malta fixou sua capital na cidade fortificada de Valletta (homenagem ao comandante Jean de Valette) e a sociedade era governada por um conselho chefiado pelo Grão-Mestre Hospitalário, que mantinha o rigor religioso como regra entre os habitantes, incluindo a atuação da Inquisição para lidar com as heresias. Além de doações da nobreza europeia, a economia era mantida pelos tributos e pelas atividades marítimas e agrícolas. Construções barrocas adornavam as cidades e, além dos hospitais administrados pela ordem, até uma universidade foi fundada em 1769, indicando o progresso reinante nas ilhas. Se a calmaria das disputas externas prevaleceu após acordos de paz entre cristãos e otomanos, a população maltesa se dividiu entre os grupos de procedências diferentes que habitavam a região enquanto o despotismo do governo chegou a um ponto insustentável. Em 1798, os Hospitalários perderam influência em Malta quando confrontaram Napoleão Bonaparte, que assumiu o controle através de uma invasão enquanto se dirigia ao Egito. O soberano francês destituiu a ordem do comando da ilha e confiscou os seus bens sem contestação da população, que aceitou a troca de comando porque já estava farta dos abusos praticados pelo regime deposto.
O fim do domínio maltês foi mais uma queda sofrida pelos Hospitalários, que já eram chamados de Soberana Ordem Militar de Malta ou Cavaleiros de Malta. Depois disso, a dispersão de seus membros foi inevitável e uma crise de liderança se abateu sobre os remanescentes, que se abrigaram na Sicília sob proteção britânica.
A resiliente ordem só se restabeleceu em 1834 e mais uma vez precisou passar por nova adaptação às circunstâncias. Mesmo sem um território, estabeleceram uma sede em Roma. Em 1879, protegidos pelo Papa Leão XIII, os cavaleiros assumiram atribuições não-militares e voltaram à atividade originária da prestação de assistência aos doentes e necessitados. Integrantes da instituição histórica atuaram no corpo médico durante as duas guerras mundiais, participaram dos esforços para lidar com calamidades bélicas, epidêmicas e desastres até os dias atuais. Recentemente a ordem passou a agir nas operações de socorro a refugiados no Mediterrâneo. Membros da Ordem Soberana e Militar de Malta atuam em mais de 120 países e costumam ter status diplomático como parceiros da ONU. As controvérsias ainda fazem parte da instituição e entre 2017 e 2020 polêmicas envolveram a relação entre o grão-mestre Matthew Festing e o Papa Francisco, que acabou intervindo no comando da ordem e encaminhou uma reforma que resultou na Carta Constitucional de 2022, que reforçou a governança democrática, limitando o poder do Grão-Mestre e incluindo leigos em decisões.
Referências:


[…] Seu irmão mais velho, Oruç, foi capturado e outro irmão, Ilyas, foi morto em um ataque dos Cavaleiros de Rodes, uma ordem militar cristã dedicada à guerra contra os muçulmanos. Este evento trágico […]
[…] sua frota naval realizou feitos importantes como a conquista de Rhodes e expulsão dos Cavaleiros Hospitalários em 1522. Territórios dos atuais Marrocos e Tunísia, além de regiões na costa africana também […]
[…] Como resultado da Primeira Cruzada, em 1099, Jerusalém foi tomada dos muçulmanos sob a liderança de Godofredo de Bulhão, que assumiu a condição de “Advogado do Santo Sepulcro”. No ano seguinte, Godofredo foi sucedido no poder por seu irmão, Balduíno I, que estabeleceu o Reino Cristão de Jerusalém nos moldes de uma monarquia feudal europeia, composto pelos condados de Edessa e Trípoli, além do Principado de Antioquia. No decorrer dos reinados de Balduíno I (1100–1118), Balduíno II (1118–1131), Melisende de Jerusalém (1131–1153), Fulk de Jerusalém (1131–1143), Balduíno III (1143–1162) e Amalarico I (1163–1174), o reino foi fortalecido pela edificação de castelos e o incremento de tropas constituídas pelas ordens militares dos Templários e os Hospitalários. […]
[…] Os Hospitalários: A Ordem Medieval que Chegou ao Século XXI […]