Cesare Beccaria, o iluminista que revolucionou a justiça criminal

(Representação visual gerada pela IA Dreamina)

Ao longo da história das concepções e práticas penais, castigar os criminosos e outros indivíduos considerados danosos envolveu variados métodos extremos de imposição da força punitiva. Era comum que as penas fossem duras e desproporcionais aos atos praticados e a pena de morte era amplamente aplicada até diante de crimes não violentos como falsificação ou furto. Torturar era uma procedimento habitual para extrair confissões e obter informações, embora não faltassem exemplos de falsas confissões expressas pela necessidade da pessoa torturada de fazer o sofrimento imediato da agressão acabar. Torturas também eram aplicadas como parte do ato de execução de condenados e podiam ocorrer de maneira pública como um espetáculo sangrento e como sinal de alerta para intimidação da sociedade. A execução fatal poderia ocorrer por meio de diversos métodos, incluindo os mais engenhosos e sádicos e agentes como os torturadores e carrascos eram os profissionais encarregados de desempenhar criteriosamente os atos que proporcionavam dor e morte. 

O aspecto físico das punições estava associado ainda aos parâmetros normativos, ideológicos e relações de poder vivenciados nas sociedades que adotaram as penas mais severas e brutais. Os abusos faziam parte do cenário, pois os juízes ou aqueles que definiam os destinos dos réus possuíam ampla discricionariedade para interpretar as leis e aplicar punições, resultando em decisões frequentemente inconsistentes e baseadas em preconceitos pessoais e pressões sociais, proporcionando resultados injustos e arbitrários. Os rigores desse sistema punitivo possuíam variações dependendo de quem sofria os castigos, pois enquanto os membros da elite tinham maiores chances de recebimento de penas brandas ou até mesmo da impunidade, pobres arcaram com rigores muito mais fortes até diante dos delitos menos graves, ressaltando que o sistema era também uma forma de dominação social. 

Julgamentos sumários sem direito a defesa eram rotineiros e os meios de comprovação empregados nas acusações muitas vezes eram deficientes, sinalizando que condenações equivocadas eram muito comuns. Aqueles que conheceram as prisões eram submetidos aos ambientes mais sombrios imagináveis, pois os locais de encarceramento eram caracterizados pela extrema degradação, superlotados e insalubres. Eram estruturas usadas principalmente para detenção antes do julgamento ou como locais de espera para execuções, e não para a reabilitação dos presos porque não havia preocupação com a reabilitação dos detentos e a justiça era abordada como uma forma de vingança.

Apesar de já estabelecido como uma espécie de tradição penal, durante o Iluminismo as variações desse sistema que prevaleciam em significativa parte da Europa começaram a ser contestadas e apontadas como indícios de um modelo de sociedade que precisava ser superado. Um dos mais significativos pensadores dedicados a esse conjunto de situações foi o jurista, filósofo e economista italiano Cesare Beccaria, identificado como um dos fundadores da criminologia moderna, autor de concepções que foram além da discussão crítica e que influenciaram o desenvolvimento do direito penal posterior. 

Nascido em 1738 em Milão, Cesare Bonesana di Beccaria era filho de Giovanni Saverio Beccaria e Maria Visconti di Saliceto, ambos provenientes da nobreza. Suas condições privilegiadas e seu intelecto aguçado abriram portas para uma formação sólida e avançada. Ele foi educado em escolas religiosas tradicionais e obteve uma base em humanidades até ingressar na Universidade de Pavia, onde se formou em Direito, apesar de seu desinteresse dos aspectos religiosos do curso, que se dedicava bastante aos temas do direito canônico. Ele preferia as leituras provocativas das obras de Montesquieu, Voltaire, Rousseau e Diderot, que influenciaram sua maneira de encarar as práticas e reflexões jurídicas. 

Ele se casou aos 23 anos com Teresa di Blasco, mas o matrimônio foi complicado porque a esposa tinha uma saúde mental comprometida, provavelmente depressão ou transtornos de ansiedade. A única filha do casal, Giulia, acabou sendo parte essencial da vida de Beccaria, pois ele dedicou a ele muito de seu tempo e afeto, assumindo pessoalmente a atividade de educar a menina, que recebeu do pai um nível de instrução incomum para a população feminina da época. Giulia acabou se tornando também uma interlocutora e confidente do pai, que foi afetado pela infelicidade matrimonial e preferiu adotar uma vida isolada das agitações e eventos sociais, sendo provavelmente, assim como a esposa, afetado pela depressão e ansiedade persistentes. 

Uma maneira para lidar com as dificuldades íntimas e emocionais foi intensificar suas energias para a atividade intelectual. Ele se associou a um grupo de pensadores conhecido como “Academia dos Punhos” (“Accademia dei Pugni”), que era organizado pelos irmãos Pietro e Alessandro Verri. O grupo promovia intensas jornadas de estudos e discussões que estimularam as ideias do jovem advogado. Aos 26 anos ele publicou “Dos Delitos e das Penas” (1764), sua obra mais conhecida e influente, livro que se tornou uma importante referência e êxito editorial. Beccaria foi imediatamente reconhecido pelo trabalho, que rendeu homenagens, propostas e contatos com personalidades que ele admirava como Diderot e d’Alembert, além de elogios de Voltaire, Jeremy Bentham, entre outros. Ele chegou a tentar se estabelecer em Paris, centro pulsante do Iluminismo, mas preferiu voltar para Milão para trabalhar como professor e assessor governamental. 

“Dos Delitos e das Penas” foi um sucesso imediato e causou impacto porque apresentou uma perspectiva renovadora sobre o penalismo, contendo crítica audaciosa, propostas inovadoras e alinhamento com os ideais iluministas em um momento histórico de transformação. Beccaria atacou a prática da tortura, a pena de morte a as punições desproporcionais, acusando tais ocorrências como resquícios de barbárie, além de considerar que eram ineficientes, além de avaliar que os casos de injustiça iam além da interpretação legal e aplicação de penas. Ele propôs, em contrapartida, a adoção de princípios humanizados voltados para a socialização dos condenados e prevenção, substituindo a lógica vingativa que imperava. Ele destacou que a adoção da razão deveria nortear as instituições legais, promovendo legislações eficientes e justas baseadas no tratamento orientado pela igualdade, superando privilégios para a elite e abusos sobre os pobres. Outra preocupação salientada no livro foi a separação entre a Igreja e o Estado efetivada pelo fim dos julgamentos e penas religiosas por heresia, noção que atraiu os defensores da diminuição do poder institucional da religião. Governos promoveram reformas baseadas em suas prescrições, a exemplo de medidas adotadas por Catarina, a Grande (Rússia), da abolição da tortura na Áustria (1776) e na Toscana (1786), aém de influenciar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), durante a Revolução Francesa.

No decorrer de sua atividade docente e desenvolvimento de seus estudos, Beccaria revelou grande interesse por economia, área que ele também associou aos princípios filosóficos que defendia. Sua obra “Elementos de Economia Pública” (“Elementi di Economia Pubblica”) teve publicação póstuma, em 1808, e nela o autor defendeu a ideia de que o Estado tinha um papel regulador da economia, assumindo a responsabilidade de impedir monopólios, investir em educação e garantir condições dignas para a população.  

Depois do reconhecimento por suas ideias a respeito do sistema penal, fundamentos da justiça e reformas sociais, Cesare Beccaria assumiu funções públicas, mas também se afastou do Academia dos Punhos e recusou convites para viajar e debater suas concepções em outros países, acentuando sua atenção à filha e se isolando das agitações sociais. Com o agravamento de saúde mental e física sua atividade intelectual também declinou ao ponto de fazer dele um homem recluso com raras interações. Ele morreu em novembro de 1794, sendo sepultado discretamente em Milão.

Seu legado continuou a crescer nos anos que se seguiram, inspirando reformas legais, abolindo métodos punitivos e proporcionando reflexões sobre as condições sociais que favorecem a prática de crimes. Seus ensinamentos reforçaram ações para a promoção de um Estado de Direito epromoção de políticas em favor do bem-estar coletivo.


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