A História nos games

Originalmente publicado no blog Escola em Jogo

A leitura é certamente um ato de incrível relevância porque tem os benefícios da aquisição de informações, mobiliza extraordinárias atividades mentais para processar tais informações e pode proporcionar prazer e satisfação. É uma atividade de relevância inquestionável, mas o pesquisador de mídias Steven Johnson tem defendido a ideia de que a televisão e os videogames também merecem uma elevação de status e maior reconhecimento como meios instrutivos. Ele avalia que a chamada cultura popular não-literária tem a capacidade de proporcionar experiências tão profundas quanto a leitura. Segundo Johson um programa de TV pode conter informações úteis dispostas facilmente para os espectadores ou um jogo pode mobilizar complexos esforços mentais, então não dá para enquadrar estas mídias meramente como distrações e não aproveitar suas potencialidades tende a ser um enorme desperdício.

A experiência de introspecção produtiva proporcionada pelos livros é hoje reforçada por outras possibilidades, pois as fontes não-literárias são meios cada vez mais sofisticados de suporte para o pensamento, a expressão, a geração de ideias e conhecimento. Certamente a questão do conteúdo é sempre algo a ser considerado, sobretudo porque a massificação do audiovisual e as lucrativas cadeias de produção e consumo midiáticos possibilitaram uma variedade de coisas disponíveis para todos gostos e intenções. É verdade que a literatura, o teatro, a pintura e ainda a produção intelectual escrita dedicada à exposição e análise de ideias e posicionamentos ideológicos também sempre tiveram suas questões relativas aos gostos e intenções. A expressão não coisa desprovida de problematizações seja ela pelo meio que se apresentar.

A História é genericamente um tema dos mais explorados pelas diversas produções de expressão, seja em meios consagrados ao longo dos tempos ou através das mídias mais modernas. Isso é interessante porque mesmo sem o domínio formal do conhecimento histórico ou sem um senso constituído de consciência histórica, as pessoas estão o tempo todo se deparando com referências da História em diversas fontes informativas e de entretenimento. As pessoas consomem História mesmo sem se dar conta disso.

Temas e contextos históricos também são midiaticamente atrativos, do contrário não existiriam tantas produções para cinema, TV e plataforma de streaming como Netflix e Prime Video, além de games e mesmo produções literárias que agregam vários produtos audiovisuais, impressos e espaços virtuais conseguindo tantos fãs. Podem ser exploradas narrativas baseadas em episódios reais, ficções e até tramas que misturam personagens e episódios históricos ou outros simplesmente inventados para as produções, mas o fato é que a temática baseada na história tem forte apelo. Muitas pessoas consomem muito mais a história através da mídia do que através de leituras da produção historiográfica sobre os contextos de seus interesses. Pode-se também perceber que muitos livros propriamente de história são atualmente descobertos, lançados e lidos em função das produções midiáticas que criam uma legião de admiradores e consumidores ávidos pela exploração dos universos ou ambientes históricos que inspiram as obras midiáticas que assistem, jogam ou lêem.

Fora das instituições de ensino, a História tem sido aproveitada sem a condição de ser uma matéria a ser estudada e sem as liturgias educacionais e há até quem diga – e não me atrevo a discordar – que aprende mais assim mesmo, sem aulas formais, sem professores ministrando suas apresentações metódicas, sem leituras acadêmicas obrigatórias e tendo como motivação o gosto de explorar um tema que agradou e achou interessante.

De uns anos para cá, por exemplo, os Vikings viraram uma atração fenomenal no mundo inteiro, despertando interessados em seus mitos, em suas sagas incríveis, nos guerreiros sanguinolentos, em seus rústicos cenários de atuação e nos costumes curiosos destes povos. Os nórdicos históricos passaram a inundar produções famosas, angariando uma legião cada vez maior de admiradores de várias faixas etárias, mas as misturas de referências factuais e ficcionais em produções sobre os Vikings também ilustram que frequentemente há uma confusão entre fãs do tema, pois muitos recepcionam as narrativas sem distinguir fatos e elaborações literárias preparadas para se contar um enredo numa peça de entretenimento.

Certa vez me vi em meio a uma situação curiosa quando fiz um comentário numa fanpage do Facebook dedicada à série canadense Vikings (superprodução do History Channel exibida no Brasil pela Fox), pois fui atacado por outros membros sob a acusação de promover a imperdoável prática do spoiler ao me referir ao que se passaria com os personagens Rollo, um dos principais figuras das primeiras temporadas da série (que viria a se tornar o famoso Duque da Normandia após se aliar à monarquia francesa – embora tenham enfiado o personagem histórico num contexto inventado e convivendo com outros personagens que nunca estiveram em sua trajetória) e Alfredo de Essex, inimigo dos nórdicos carismáticos da produção (e que fora o único da tradicional monarquia britânica a receber o epíteto de “O Grande” por suas façanhas como unificador e pelas vitórias contra os vikings). Quando ocorrências que já têm mais de 1.000 anos viram spoiler de série de TV indica que a paixão pelo tema e pelas alusões históricas convive com uma confusão estabelecida entre história e ficção, havendo então uma necessidade adicional de abordar a história presente na produção midiática.

Desde cedo o conteúdo histórico foi explorado no meio audiovisual, que deu movimento, ação e promoveu “reconstituições de época” através de encenações de episódios marcantes. Em muitos casos a iniciativa destas montagens pode ter o propósito de contribuir para a ilustração ou informação do público, mas isso não é uma obrigação, afinal, as tramas historicamente inspiradas podem ter sido adaptadas por conterem narrativas interessantes o suficientes para envolver e entreter os múltiplos espectadores e derivar novas estórias elaboradas para os jogos.

Claro que as produções audiovisuais não são intocadas por ideologias ou desprovidas de intencionalidades e conceitos na concepção e propósitos das obras, afinal, a elaboração artística é um vigoroso meio para a expressão e veiculação de ideias. Muitas produções repercutem justamente pela condição de representar e promover discursos contundentes que mobilizam consciências, atuam para modificar ou cristalizar concepções e provocam acalorados debates. Abordar contextos ou temas históricos em produções audiovisuais mexe com possibilidades analíticas variadas sobre a produção em si, sua caracterização, sua narrativa, o posicionamento da abordagem do contexto, entre outros detalhes que podem frequentemente passar gerar polêmicas entre os mais críticos ou passar despercebidos pelo público que recepciona as obras como artefatos de entretenimento sem esperar deles muito mais do que isso. O uso educativo do audiovisual implica na necessidade de avaliar criteriosamente o material, levando tudo isso em consideração.

A história nos games tem outras particularidades além dessas. Num filme o espectador tem uma posição passiva sobre a trama ainda que ela gere impacto sobre quem assiste, mas um jogo deve ser manejado e exige então uma posição ativa – espectador é substituído pelo jogador. A interação define outro tipo de experiência, possibilitando que o jogador atue porque os jogos também podem possuir suas narrativas, porém elas sofrem variações a partir das intervenções dos jogadores. Um jogo pode ter muitos de seus parâmetros e possibilidades já predefinidos em sua programação, mas a partida acaba sendo uma atuação do jogador e num jogo encenado num ambiente histórico isso é particularmente interessante porque o desenvolvimento da trajetória do jogo vai depender das decisões e ações dos jogadores mesmo que elas estejam definidas pelos algoritmos e processos presentes na construção do jogo.

Os jogos de temas inspirados na história começaram a fazer sucesso mesmo sem que tenham sido projetados como ferramentas educacionais e provavelmente esse êxito ocorreu em parte por causa disso. Agora já não basta mais apenas estabelecer castelinhos e criar soldadinhos virtuais inspirados em unidades de combate históricas, os jogos foram atingindo um grau um grau cada vez maior de detalhes e mais referências passaram a ser incorporadas. A série Civilization, por exemplo, até adotou o slogan prometendo aos jogadores “mudar o curso da história numa batalha no tempo” e também a possibilidade bem pretensiosa de abranger “toda a história da humanidade” na medida em que as sucessivas versões e mods foram proporcionando cada vez mais contextos e referências.

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Representação de D. Pedro II em Civilization VI

Pesquisadores também passaram a fazer parte das equipes de desenvolvimento de games. O historiador Laurent Turcot, da Universidade de Quebec, foi contratado como consultor para a produção de Assassin’s Creed Unity e de ficção transcorrida no contexto da Revolução Francesa, relatando para o site Vice que a experiência de reconstrução e adaptação virtual da Paris do século 18 exigiu um minucioso trabalho de pesquisa em arquivos de imagens e relatos sobre o cotidiano da cidade no período revolucionário. Ao historiador cabia o trabalho de orientação importante para o desenvolvimento de aspectos contextuais para para a rica concepção visual do projeto. Para Turcot o alcance de seu trabalho histórico acabou tendo uma dimensão especial, pois se uma produção acadêmica formal atingiria algumas centenas de leitores, sua contribuição materializada no jogo alcança milhões de jogadores. A riqueza da reconstituição digital da cidade fez com que Turcot desejasse que houvesse até uma versão do jogo na qual pudesse explorar apenas o cenário como ferramenta didática. Maxime Durand, que é “historiador interno” da Ubisoft, empresa produtora da série Assassin’s Creed, esclareceu em entrevista para o site Wired que o trabalho de elaborar narrativas ficcionais para os games a partir de contextos e pesquisas históricas requer algumas precauções, identificando, no caso da série, eventual jogabilidade nas “áreas cinzentas” da história, encontrando aspectos ambíguos ou repletos de dúvidas que podem suscitar possibilidades para a criação de enredos alternativos que possam ser associados ao fatos históricos que procuram descrever com a maior fidelidade possível. Durand, responsável pelas narrativas da série, ressaltou, por exemplo, que para a produção do episódio Unity investigou vários registros sobre locais e personagens menos conhecidos do contexto revolucionário francês, além de valorizar os mitos populares do período como fontes importantes para o inspiração e criação dos personagens. Equipes especializadas como essas coordenadas por Durant indicam o quanto a pesquisa histórica tem sido valorizada no processo de desenvolvimento de jogos complexos ambientados em contextos históricos, então tem-se uma dimensão de que estamos mesmo lidando com produções que possuem muito a oferecer.

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Perfil de Maxmime Durand no LinkedIn com a vinculação “Historiador na Ubisoft”. Um novo campo para atuação de historiadores.

Mas, evidentemente, como fica claro a partir de esclarecimentos como o de Durand, os jogos podem conter referências e reconstituições muito bem cuidadas, mas são jogos e não expressões dos fatos. Muitos dos jogadores que jogam essas produções esperam se entreter e não se instruir a partir delas, embora – assim como em outras produções audiovisuais – venham a ser os únicos artefatos com os quais vários irão se deparar com os temas explorados. Dito isso, parecem exageradas determinadas cobranças feitas sobre limitações históricas, narrativas, analíticas e conceituais encontradas em jogos digitais produzidos para divertir.

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Criação artística de Robespierre para o Assassin’s Creed Unity

Frequentemente o próprio processo de aprender a jogar uma “simulação histórica” já exige um bom esforço e algumas horas de prática. Lidar com essa etapa já é em si um desafio que de imediato se impõe diante de quem vai jogar e, sobretudo, de quem pretende usar os jogos para fins didáticos. Ultrapassado este obstáculo, temos a inevitável problematização. Jogos de estratégia que exploram a linha expandir-dominar são frequentemente condenados porque possuem um caráter belicista e imperialista, variando outras vicissitudes apontadas como parcialidade, etnocentrismo, anacronismo, uma simplificação aqui ou uma generalização ali, premissa equivocada baseada em conceitos errados… ufa, é difícil!

Sejamos justos, se qualquer representação é sujeita aos aspectos próprios da intervenção das perspectivas subjetivas, dos erros e acertos de quem a cria ou explora e ainda dos interesses que se associam a ela, os jogos também incorrem nisso e não são mais defeituosos do que qualquer outro tipo produção. Andrew Elliot, um estudioso dos jogos como ferramentas para ensinar e aprender história, chegou a esclarecer que os jogos históricos não são simulações, são simulacros – imitações notoriamente imperfeitas. Essa classificação atenua o tom acusatório e também alivia a tensão de se produzir um jogo que necessite cumprir uma série de rigores formais e prescrições exigidas em seus conteúdos. Além do mais, a exploração pedagógica dos jogos requer a atuação dos professores na mediação e a capacidade de inferência dos estudantes diante das possibilidades levantadas pela experiência de jogar e refletir sobre a História por meio destas ferramentas. Cabe considerar ainda que o simples ato de jogar um jogo de inspiração histórica pode não ser suficiente para se aprender qualquer coisa sobre seu teor histórico se não for estimulada a atenção necessária, assim como ter um conhecimento constituído sobre a história pode não influir sobre o êxito no jogo.

O audiovisual pode ser então um meio de proporcionar um encontro lúdico com o passado, promovendo conexão, deslumbramento e engajamento do público com os fascínios e questões que a história proporciona, podem ser aliados no processo construção da consciência histórica. As tecnologias audiovisuais são hoje, mais do que nunca, meios que não podem ser desprezados e aproveitá-los exige preparo, olhares atentos e disposição para experimentar.

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