Nos tempos digitais nossos rastros são virtuais, suscetíveis ao puro e simples desaparecimento sem deixar pistas ou memórias. Isso certamente será um desafio para os historiadores do futuro, que precisarão vasculhar por restos de bytes ou por mídias digitais obsoletas e sem uso. Esse problema me veio fortemente à mente após a leitura de um ótimo texto do suplemento dominical Aurora, que o Diario de Pernambuco publica. O texto impresso foi então digitalizado para ser replicado aqui, o que é uma comprovação daquilo que ele aborda.
Para lembrar de não esquecer: Com a progressiva transição da materialidade para o virtual, como leremos a sociedade contemporânea a partir do material que produzimos hoje?
Felipe Fernandes – Para o suplemento Aurora, do Diario de Pernambuco de 14 de outubro de 2012
As fitas cassetes estão fora da caixa de origem: distribuídas em pilhas de tamanhos semelhantes sobre o piso de tacos. No dia anterior, Sarnarone Lima, 43 anos, escutava algumas delas naquele mesmo quarto. Uma amiga de sua mulher acabara de lhe devolver o aparelho de som, um gravador antigo. Ele nem se lembrava mais do empréstimo, achava que tinha perdido. Aproveitou o reencontro inesperado para ouvir os arquivos. São mais de cem entrevistas gravadas para o trabalho de conclusão de curso na universidade, que acabou originando seu primeiro livro, Zé (Editora Mazza, 1998).
Diante da quantidade de objetos espalhados pelo quarto, as fitas não chamam a atenção. O escritor e jornalista conta que, mesmo quando arruma, o cômodo volta à desordem original em pouco tempo. Numa dobra da parede, guarda cadernos usados como diários em estantes de ferro. A quantidade de Volumes atinge á casa das centenas. Não lembra quando começou a escrevê-los. Sabe apenas que a cada caderno finalizado, começa outro .e guarda ó anterior.. AS vezes escolhe um e se debruça durante a tarde inteira, viajando na lembrança.
Se antes da popularização do computador memória humana podia ser representada por uma torre com salas de arquivos parecidas com o quarto de Samarone, hoje ela é medida em bytes. Vasculhando com os olhos o ambiente onde o jornalista guarda Seus cadernos, é possível registrar quatro máquinas de escrever e nenhum computador. “Sou da civilização do papel”, confirma. Isso não significa que ele não bote os pés no mundo digital. Simplesmente não gosta. Usa quando necessário. Para postar textos nos seus blogs (estuario.com.br e quemerospoemas.blogspot.com.br), por exemplo. Ou na hora de redigir um livro. “Se bem que agora estou escrevendo um livro à mão mesmo”.
Entre as principais críticas ao computador e afins, Samarone cita a imaterialidade do que é produzido (ele gosta do toque, de manusear seus escritos) e a insegurança quanto à preservação do material. “Tudo pode desaparecer muito facilmente. Basta um dique e as coisas deixam de existir”. Confia mais na palavra impressa, na fotografia revelada, na pasta de arquivo e nas prateleiras da estante. O pé atrás se justifica, diz Daniela Osvald, professora de novas tecnologias da comunicação na Faculdade Cásper Líbero: “A maior parte das informações circula hoje no meio digital, através da internet. Inclusive a comunicação interpessoal. E as pessoas esquecem que as máquinas são finitas e suas capacidades de armazenamento também”. Diante do tamanho da produção de dados proporcionada pela web, ela pergunta: “O quanto de máquina vai ser necessário para armazenar 50 anos de uso da internet?”.
A reflexão nos faz pensar na fragilidade dos arquivos virtuais e na possibilidade dessa fragilidade representar um problema para a futura análise histórica de nosso tempo. Daniela lembra, por exemplo, de quando a faculdade onde trabalha reformulou o próprio site. “Migramos de servidor e não havia como compatibilizar os arquivos antigos. Por conta disso, cerca de sete anos de produção dos alunos do curso de jornalismo foram perdidos”.
Diariamente, Samarone Lima lê mais de três jornais. Costuma recortar as matérias que estão ligadas às suas áreas de interesse, como a ditadura militar ou Cuba, temas de alguns de seus quatro livros. Antes, costumava guardar as matérias em pastas, separadas por ordem alfabética. Até que descobriu que colá-las nas páginas de um caderno é mais eficiente porque facilita a leitura. “E é mais prazeroso, passo horas recortando e colando”, confessa. Uma pilha de folhas pautadas com artigos colados se acumula ao pé da bancada. Só neste ano, já foram dois cadernos inteiros. Em contraste com a seriedade dos assuntos, as capas são coloridas e infantis: um grupo de porquinhos jogando futebol americano em um, um casal de crianças tocando instrumentos musicais no outro. “Acabei criando um grande arquivo sobre os temas que pesquiso. Quando preciso de qualquer coisa é só abrir os cadernos. Pode ser mais simples que pesquisar no Google”.
Como engavetar websites
Um estudo feito pela universidade norte- americana Old Dominion, da Virgínia, mostrou que um ano depois de sua primeira publicação na internet 11% dos links compartilhados no Twitter já não estão mais disponíveis. Depois desse período, a cada dia 0,02% dos sites desaparecem. Guiada pelos pesquisadores Hany Salah Eldeen e Michael Nelson, o levantamento analisou mais de onze mil links publicados no microblog sobre seis assuntos de grande repercussão nos últimos três anos. Chegou à conclusão de que 25% dos Sites postados em 2009 sobre a revolução no Egito, os protestos no Irã, o surto da gripe H1N1 e a morte de Michael Jackson, por exemplo, já estão fora do ar.
Desenvolvida pelo engenheiro de computação norte-americano Brewster Kahle, a biblioteca digital Internet Archive, com sede na Califórnia (EUA), tem arquivado websites desde 1996 com o intuito de promover “o acesso universal ao conhecimento”, como explicitam na própria homepage. A organização não governamental faz snapshots de sites do mundo inteiro, que ficam disponíveis para consulta através do serviço chamado de Wayback Machine. Armazena, ainda, imagens e livros digitais livres de direitos autorais. Instituições que desejam ter seus acervos preservados podem tornar-se parceiras da organização através do projeto Archive it, que armazena sites para empresas. Atualmente, o Internet Archive guarda 2 petabytes de dados, o que equivale a cerca de dois milhões e cem mil gigabytes. Para quem quiser criar seu próprio arquivo, existem softwares de leituras offline que podem armazenar o website no seu disco rígido, gerando um espelho do endereço desejado. A prática de armazenar páginas da internet, entretanto, é pouco difundida. “As pessoas acham que o que está na internet vai durar para sempre”, observa Daniela.
Compartilhar é viver – Ou recordar é hábito ultrapassado
Em caixas da última prateleira está escrito “Negativos”. Samarone Lima conta que eles foram contrabandeados da casa da família, em Fortaleza. Desde que os pais se separaram, os negativos ficaram esquecidos num quarto qualquer da casa da mãe. Aos poucos, ele foi trazendo os registros para seu apartamento. De tão desprezados, ninguém reclamou sua falta. “Essa é uma possibilidade que as mídias digitais não permitem: você encontrar num canto qualquer uma caixa com diversas imagens de sua família. Hoje tem até casais que se divorciam e deletam as fotos juntos”, comenta Samarone. Antes da câmera digital, ainda que houvessem fotografias queimadas ou rasgadas, sempre sobrava uma ou outra esquecida no fundo da gaveta. Com a alternativa de “enviar todos os arquivos para a lixeira”, fica difícil sobrar um.
“À medida que uma fotografia vai ganhando longevidade, ela vai se tornando documento”, explica Rubens Fernandes Junior, professor e diretor da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado. Sempre que possível, ele compra fotografias antigas (às vezes álbuns inteiros) de pessoas desconhecidas. Além de curador e crítico de fotografia, é pesquisador das relações humanas através da imagem. Seu diagnóstico sobre a maneira com que a sociedade contemporânea lida com a preservação de arquivos é preocupante. “Estamos caminhando para desconstrução da memória”, anuncia.
O maior problema, segundo ele, está no cerne da relação estabelecida com a imagem. “Não se fotografa mais para guardar, apenas pra compartilhar. Guardar implica em materialidade, durabilidade. Já compartilhar implica em algo efêmero: aparece e some num dique”. O importante não é preservar, mas colocar a imagem nas redes sociais. Os problemas, segundo Rubens, vão aparecer a longo e médio prazo. A compatibilidade de arquivos é uma das &meças dos acervos digitais. “Não vamos guardar e manter ativas traquitanas ultrapassadas apenas para garantir o acesso às imagens. O que nos garante, então, que os arquivos produzidos hoje serão compatíveis com as máquinas do futuro?”. Se pensarmos que a imagem é uma das principais bases de comunicação da sociedade contemporânea, o cenário fica ainda mais assustador. “É uma grande contradição. Vivemos numa-profusão de imagens. No entanto, basta acontecer um problema, um boom, e tudo se perde num instante”.
Minhas cartas, seus e-mails
John Lennon faria 72 anos na semana passada. Para marcar a data, o biógrafo oficial dos Beatles, Hunter Davies, idealizou As cartas de John Lennon (Planeta do Brasil, 2012), livro que apresenta uma compilação de todas as correspondências do ex-beatle. Sua relação com a família, com as mulheres, a intimidade do ídolo exposta em trocas de mensagens. Esse é um privilégio que passa longe dos fãs de artistas contemporâneos. “Primeiro a popularização do telefone já quebrou o registro dessa intimidade. Hoje, o e-mail e as redes sociais tornam ainda mais difícil a existência das cartas “íntimas”, diz Rubens Fernandes Junior. Na pequena caixa de madeira em cima da bancada, Samarone Lima guarda o que considera ser um de seus tesouros. Um carimbo para data, outro para o seu endereço e outro para classificar a correspondência. Até um dia desses ele costumava mandar cartas para os amigos. Geralmente, compartilhava artigos que lia e lembrava do destinatário. Até que desistiu dos Correios. “Ninguém me respondia com cartas. No máximo enviavam uma resposta por e-mail ou telefone”, reclama.
Ainda que fiquem registradas na internet, as mensagens trocadas por e-mail ou redes sociais estão sujeitas a uma senha — ao contrário das cartas, sempre disponíveis para aqueles que as encontrem. Por isso, sem acordo prévio, informações da conta pessoal são condicionadas à existência do autor. Em caso de morte, todo o conteúdo corre o risco de ficar inacessível — apesar de continuar ocupando espaço na web. Para evitar a perda do conteúdo, existem empresas especializadas em gerenciar a vida após a morte na web, que gravam as senhas das contas dos usuários e programam os destinos delas. As redes sociais também oferecem, cada uma a seu modo, opções para que o arquivo seja preservado. O Twitter, por exemplo, envia à família do morto uma cópia de todas as publicações dele — desde que o parentesco seja comprovado. “A partir da análise do que fomos conseguimos entender melhor quem somos. Por isso é importante manter os registros de intimidade, seja nas fotos ou nas mensagens”, explica Rubens.
A engenharia da memória
As informações presentes na rede estão sempre situadas num servidor. Vinícius Cardoso Garcia, coordenador da graduação em tecnologia da informação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), explica que os arquivos costumam ser replicados sete vezes para garantir um mínimo de segurança. Sendo assim, para cada giga disponível na rede, são necessários sete de espaço no servidor. “E cada réplica dessa é guardada num local diferente para garantir que ao menos uma esteja sempre preservada’:
Para o Internet Archive, por exemplo, são necessários 86 servidores. O projeto é subsidiado por parte das instituições cujos acervos são armazenados. “O armazenamento de dados é bastante caro. Além do custo da tecnologia envolvida, é preciso dar conta também do espaço para instalação desses servidores, que geralmente são bem grandes, e as despesas referentes a refrigeração das máquinas”, afirma Vinícius, que dá aulas de engenharia de software.
Para baratear custos, as empresas costumam construir datacentros em lugares frios, como na Finlândia. “O Google instalou um desses próximo a uma cachoeira justamente por isso”, aponta o professor. Na medida em que os usuários consomem apenas o espaço necessário à sua demanda, compartilhando servidores, a computação em nuvem também surge como uma alternativa para atenuar o preço do armazenamento de dados. “É o uso racional da tecnologia. E o bom é que você não precisa se preocupar onde estão os arquivos, só se são acessíveis”, atesta Vinícius.
Na casa de Samarone Lima, o material armazenado preenche o cômodo inteiro. Das fitas cassetes no chão, do lado dos cadernos sobre a ditadura, às caixas de negativos que tocam o teto em cima da última prateleira. “Não quero nem pensar como vai ser se eu tiver que me mudar daqui, algum dia”. As vezes ele não consegue encontrar um artigo ou página que procura. Mas não faz tanta diferença, ele gosta de procurar. “Eu gosto disso. Por isso não faço questão do mundo digital. Nada contra o computador, mas nada supera uma ida à papelaria”.
Há uns três anos, o jornalista recebeu uma proposta: Marcos Galindo, professor da graduação em Ciências da Informação da UFPE, digitalizou todas as fitas cassetes de Samarone com as entrevistas feitas na década de 1990. Graças ao projeto, as cem entrevistas sobre a ditadura, que serviram de base para o livro sobre o militante José Carlos Novais da Mata Machado sobreviveram. “Quando fui escuta- Ias agora, acabei descobrindo que boa parte está estragada”.
Marcos coordena o projeto de pesquisa Preservação da memória digital: um panorama brasileiro. E garante que a memória da sociedade contemporânea não está tão ameaçada quanto alardeiam. “A matriz do sistema de informação, seja ele digital ou não, é a redundância. Ou seja, a realização de cópias é que garante a segurança do sistema. Com os arquivos digitais a gente perde em durabilidade, mas ganha em plasticidade e, com isso, uma capacidade quase infinita de reprodução”.
O grande problema que o pesquisador enxerga está na maneira como lidamos com as informações. “As pessoas não imaginam que os arquivos são perecíveis. Ninguém zela com o mesmo cuidado um livro e um arquivo digital”. Essa falta de cuidado deve ser corrigida com o tempo. “Até aprendermos lidar com esse novo tipo de memória é provável que existam alguns lapsos na nossa história. Estamos vivendo um período de transição”.
O desenvolvimento tecnológico, revela Marcos, está nós levando em direção a um cenário muito mais complicado. A nanotecnologia, a computação quântica e a capacidade de armazenar dados em átomos de carbono, anunciam a complexidade do que vem por aí. “Os problemas que a gente vive hoje são fichinhas. Temos que nos preparar para o que está por vir: uma alta capacidade de armazenamento, transmissão e processamento por um-custo menor”. Ele lembra de Platão, que usou a palavra pharmakon para—se referir, à linguagem. Como o filósofo grego, Marcos, não sabe dizer se a tecnologia para o armazenamento e produção de dados é o remédio ou o veneno da nossa sociedade.
Olá
Estou fazendo um trabalho na faculdade (Psicologia) que, justamente, se utiliza da “materialidade” para fazer um papel de transição e de intermediário do contato do paciente com o terapeuta. Na verdade, iniciaremos esse trabalho em alguns dias, com um grupo de pessoas dentro de uma instituição (são trabalhadores no local). Eis que me surge a questão: Em pouco tempo, não teremos mais fitas K7, onde gravamos conversas, risadas dos amigos, alguém que foi pego cantando, distraído… Nem fotos em álbuns, nem discos, fitas, convites de aniversário em papel que imita um pergaminho… Agora tudo está online, ou gravado num HD, num pendrive, e sua existência é virtual. Estamos “perdendo” o apoio material das lembranças, que carregam consistências, texturas, cheiros, perdem a cor e ficam amarelados mostrando a passagem do tempo. Será que isso vai mexer com a nossa forma (intelectual, cognitiva) de criar memórias? Certamente vai modificar alguma coisa, talvez muita coisa…
Não consigo imaginar o que vai ser das trocas de informação apoiadas sobre memórias que são guardadas virtualmente, sem perda da cor, com direito até a um Photoshop, eventualmente.
Diga-me, eu poderia utilizar esse seu artigo para suscitar uma discussão em minha sala de aula? (Com a devida referência à sua autoria, naturalmente). Gostaria de abordar essa questão com a minha professora/ supervisora.
Um abraço