Uma dúvida histórica

Revista Época – Fevereiro/2000

Cinco séculos depois do primeiro encontro, o homem branco não sabe se os nativos devem ficar isolados ou se juntar ao mundo exterior

 O sertanista Sidney Possuelo conta sua existência pelo número de malárias que contraiu. Há 40 malárias, sua vida mudou para sempre. Foi em 1972, no Parque Aripuanã-Suruí, em Rondônia. Integrava a equipe do sertanista Francisco Meirelles e trabalhava com índios desde o início dos anos 60. Ainda assim, tremeu ao dar de cara com um pequeno grupo de cintas-largas, “O primeiro contato é como parir uma nova gente” diz Possuelo. Os silvícolas nunca tinham visto um homem branco — viviam na selva como os índios encontrados no litoral brasileiro pela esquadra de Pedro Álvares Cabral. Assim como os cintas-largas descobertos na década de 70, existem pelo menos outros 55 grupos isolados na Região Amazônica. Eles são o sujeito e o objeto do mais persistente dilema dos 500 anos de História do Brasil: deve-se levar os índios a viver junto ao branco ou deixá-los isolados em suas tribos, abraçados a seus ritos e costumes?

 Trinta anos de experiência sustentam a resposta formulada por Possuelo. “O trabalho dos sertanistas é localizá-los, demarcar a área e sair quanto antes”, diz. “É uma mistura de medo e preocupação. Depois do primeiro encontro, começam a perder a saúde, a língua e a família.” Esse raciocínio permitiu a Possuelo, hoje chefe do Departamento de Índios Isolados da Fundação Nacional do índio (Funai), organizar a mudança de rota na convivência com os mais antigos brasileiros. A Funai já não estimula contatos do gênero. Quando identifica uma área que talvez abrigue um grupo indígena, seus técnicos demarcam o território para evitar a entrada de garimpeiros, madeireiros e o surgimento de populações ribeirinhas ou de comunidades de seringueiros. Cercam a área indígena para impedir que os autóctones sejam dizimados pelo cortejo de ameaças trazidas pelos brancos: o resfriado, a varíola, o sarampo, pastos de gado e lavouras de cana. “O índio é um estrangeiro em sua própria terra” define Possuelo.

 A nova estratégia de aproximação da Funai, instituída há dez anos – período curto demais para cinco séculos de relacionamento – é urna corrida contra o tempo. Há dois anos, instalou-se um barco de observação num trecho de selva próximo ao Vale do Rio Javan, no Amazonas, quase na fronteira com o Peru. Profissionais levaram nove dias para caminhar 17 quilómetros na mata e achar a aldeia de 19 índios corubos. Chegaram tarde demais: os índios já tinham entrado em conflito com os seringueiros da região. Perderam o combate. Quatro corubos foram encontrados com balas no corpo.

A pergunta que ficou: se a Fundi tivesse alcançado a tribo antes dos seringueiros, os nativos estariam hoje vivendo em condições humanas? Não é certo. Na cidade grande, aculturados, poderiam transformar-se em quase-mendigos, como os 480 membros de uma tribo guarani do Morro da Saudade, em Parelheiros, na periferia de São Paulo. No ano passado, 20 índios morreram de pneumonia. Permanecendo em suas tribos, continuariam ameaçados por invasões. Por isso, cresce a pressão para o governo demarcar e proteger as terras indígenas. Há 930 mil quilómetros quadrados de áreas identificadas, o equivalente a 11% do território nacional. É um naco de terra do tamanho da França e da Alemanha juntas.

 O registro não impede a invasão das terras por grileiros, madeireiros, mineradoras e latifundiários, Nos últimos dois anos, houve mais de 15 conflitos em todo o país. Em maio de 1998, o líder dos xucurus em Pesqueira, em Pernambuco, Francisco Araújo, foi assassinado por fazendeiros contrários à demarcação de uma área de 27 mil hectares. Em julho passado, a índia Dominga Maciel Gundim, do grupo trucá, também foi morta por posseiros.

O Brasil é uma das únicas nações do mundo com índios em seu estado original- e isso é louvável. Mas o confronto do homem dito civilizado com os supostos selvagens é um dos capítulos mais tristes da História de Pindorama. Nas disputas entre garimpeiros e índios é possível ver, hoje, conflitos muito parecidos com os de 500 anos atrás. As tentativas de integração, idealizadas pelo Marechal Cândido Rondon de 1900 a 1910 e comandadas durante muito tempo pelos irmãos Villas Boas, fracassaram. Após o primeiro contato, os índios tornam-se dependentes dos brancos, de medicamentos a dinheiro. “Durante anos o governo adotou um paternalismo extremo”, diz o antropólogo Roque Laraia, diretor de Assuntos Fundiários da Funai.

Para os índios, o caminho é garantir a sobrevivência econômica das aldeias e diminuir a dependência da Funai. “Sob o manto da proteção, nós nos tornamos inválidos”, diz o índio Marcos Terena. Passados 500 anos de convivência litigiosa, o antigo dono do país continua a ser pouco mais que um desconhecido. Podem ser suicidas, como os guaranis-caiovás. Ou então empresários de sucesso, como os caia pás. Um índio caiapó, Paulinho Paiakan, é tratado como selvagem e estuprador e ao mesmo tempo serve de exemplo como um empreendedor que respeita o meio ambiente.

Um comentário

  1. Lamentável que muito se fala em racismo,discriminação,preconceito, desigualdade para os negros,vergonha de uma época de escravidão,com toda certeza,mas e os índios?Por que eles não são lembrados também da mesma forma,já que foram massacrados e oprimidos da mesma forma e continuam sendo até hoje.Além da escravidão,essa é mais uma injustiça social que ainda está acontecendo e ninguém faz lembrança do fato.

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