Antes de 1517, a Igreja católica ainda é universal na Europa ocidental, onde o papado de Roma não é seriamente contestado, mesmo se criticado em razão de vários abusos e de sua incapacidade em corrigi-los. Mas ele soube domar as heresias e impor-se aos soberanos dos Estados.
Depois de 1517, pela iniciativa do monge alemão Martinho Lutero, a reforma protestante contesta a supremacia espiritual de Roma, divide os Estados europeus que adotam a nova religião e que se opõem dessa forma aos Estados católicos. A reforma iniciada por Martinho Lutero anuncia um longo período de guerras de religião que causarão a morte de vinte milhões de pessoas na Europa.
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Desde o começo do século XV, a Igreja de Roma tenta reformar a si própria multiplicando os concílios, as assembléias de bispos, de arcebispos e de cardeais, que querem impedir que a Igreja se torne uma potência somente temporal, limitada aos Estados do papa, às intrigas dos Estados europeus, e que ela reencontre sua função espiritual de iniciadora, protetora e propagadora da fé. Os sermões de Bernardino de Siena, Vincent Ferrier, Jean de Capistran, Francisco de Paula querem um retorno à fé primitiva e a eliminação dos abusos da Igreja.
Eles não obtêm resultados sensíveis. Os príncipes da Igreja só pensam em política, os bispos só querem enriquecer, e o próprio papa só pensa em vender indulgências, dias de paraíso aos ricos fiéis, e o baixo clero pensa somente em se aproximar do povo e em viver como ele.
Contra as indulgências vendidas pelo papa, o monge agostiniano Martinho Lutero, na véspera do dia de Todos os Santos de 1517, fixa na porta da igreja do castelo de Wittenberg suas 95 teses contra as indulgências. É um ato revolucionário, pois ele questiona, dessa forma, a autoridade do soberano pontífice.
As discussões mantidas com os doutores da fé católica evidenciam sua oposição. Para Lutero a fé reside na crença única na graça de Deus que pode perdoar os pecados do homem. Sola fide, sola gratia. Qualquer intermediário entre o homem e Deus é inútil. A Palavra divina é primordial, somente a Bíblia e a prece são válidas para a salvação. Os sacramentos (menos o batismo e a comunhão) são inúteis, os santos e a virgem são cultos derivados. O “sacerdócio universal” faz de cada ser humano um modelo, sem que haja a necessidade de padres ou de bispos. A instituição religiosa como um todo deve desaparecer em prol de comunidades espontâneas de fiéis, fora da hierarquia: nada de príncipes da Igreja. Lutero escreve três obras fundamentais para consignar a nova doutrina.
Em 1519, ele manifesta ao monge dominicano Eck sua recusa a qualquer autoridade eclesiástica. No ano seguinte, Roma o condena por meio da bula Exsurge Domine. Lutero é banido do império romano germânico.
Mas sua doutrina convém aos senhores alemães que querem libertar-se da tutela de Roma e talvez até se apossar dos bens eclesiásticos, que se tornaram ilegítimos, já que a Igreja não é mais necessária. O Eleitor de Saxe protege Martinho Lutero em Wartburg. Ali ele traduz a Bíblia para o alemão, a fim de que os fiéis possam lê-la, mesmo sem conhecer o latim. Em Wittenberg, seus discípulos abolem o celibato eclesiástico e as imagens dos santos, impõem uma nova “missa evangélica” e tomam os bens do clero romano.
O luteranismo, uma doutrina da igualdade dos fiéis diante de Deus, abolirá o regime senhorial? De modo algum. Lutero não toma o partido dos “pobres cavaleiros” da Alemanha do sul que se apoderam dos bens do bispo de Treves. Ele encoraja ainda menos a revolta dos camponeses e deixa os senhores esmagá-los e enforcá-los. Os únicos que estão autorizados a tomar os bens do clero são os próprios senhores: dessa forma Lutero aprova que o senhor dos cavaleiros teutônicos, Albert de Brandebourg, se apodere das imensas riquezas de sua Ordem para constituir o ducado da Prússia. Vários príncipes alemães o imitam e adotam, por cálculo político, a fé de Lutero.
Para garantir a ordem, ele chegou a confiar aos príncipes a organização das Igrejas protestantes. Cada região, cada cidade livre, foi assim levada a abraçar a religião de seu príncipe, em virtude do costume, cujus régio, ejus religio. Breslau, Erfurt, Magde-bourg, Brême, Hamburgo, e cidades do sul como Nuremberg, Constance e muitas outras aderiram a Lutero como uma reação à ganância ou ao autoritarismo dos bispos locais.
A primeira Igreja do Estado foi a de Saxe, em 1525. O exemplo foi seguido pelo landgrave de Hesse e por outros poderosos senhores. A adoção da religião protestante garantia-lhes riqueza e independência. Lutero, que havia se casado com Katharina von Bora, colocara-se ao lado dos príncipes proprietários, atraindo para si a ira do papa e do imperador.
Em 1626, durante a Dieta de Spire, diante do poderoso movimento que se afirmava na Alemanha, o imperador teve de conceder aos protestantes a liberdade para adotar a Reforma, no conjunto das Cidades-Estado ou dos principados. Uma nova Dieta, no ano seguinte, voltava atrás nas concessões, e os teólogos católicos recusavam a Confissão de Augsbourg, redigida pelo conciliador Melanchton. A ruptura era inevitável. Começava o ciclo das guerras de religião.
Contra Carlos V, os príncipes protestantes constituíram a liga de Smalkade que obrigou o imperador, ocupado com outros conflitos europeus, a conceder-lhes a paz de Nuremberg em 1532. De 1546 a 1555, as guerras foram contínuas, mortíferas, pois os príncipes protestantes recebiam, contra Carlos y o apoio dos franceses. A paz de Augsbourg tolerava de uma vez por todas, em 1555, o princípio da liberdade religiosa de cada Estado. O norte e o centro da Alemanha tornavam-se protestantes, o catolicismo continuava forte somente no sul, em torno da Baviera. O mapa religioso da Alemanha seria assim estabelecido para os próximos séculos.
O luteranismo ganhava então o norte da Europa, primeiro a Dinamarca, onde o rei Christian III adotava oficialmente a nova religião. Ele arrastou a Noruega que estava sob seu domínio. Os católicos eram perseguidos nesses países, os bens da Igreja eram tomados. O novo rei da Suécia, Gustave Vasa, considerava vantajoso romper com Roma para se apoderar das riquezas do clero, e o luteranismo foi adotado sob uma forma bem atenuada, é verdade: os bispos, os padres ficavam em seus lugares, e as cerimônias litúrgicas estavam asseguradas. A nova religião alcançava também a Finlândia.
Na França, ela continuava marginal, como na Suíça. Neste país, o reformador Zwingli, muito mais radical que Lutero, desencadeava as guerras de religião. Na França um discípulo de Lutero, João Calvino, ultrapassava o mestre em intransigência religiosa. Protegido pelos humanistas originários do círculo de Meaux, pela rainha de Navarra e ajudado por Guillaume Farei, ele aceitou fixar-se em Genebra, em 1536, para escapar das perseguições na França.
Ali, Calvino organizou uma Igreja original, dirigida por um consistório de pastores e de antigos laicos escolhidos pelos conselhos da cidade. Ele regia os costumes, aceitava o empréstimo a juros. O dinheiro não era maldito, o que permitia aos calvinistas encorajar o capitalismo, porém recomendando a redistribuição permanente dos bens e a assistência social.
O calvinismo, acreditando na transcendência absoluta de Deus, alcançou pelas pregações e organização de sua Igreja um rápido progresso nos Países Baixos, em alguns Estados alemães, na Hungria, na Escócia, na Inglaterra e, principalmente, na França, onde se desencadeiam, a partir de 1562, as guerras de religião. Elas se encerraram somente com o Edito de Nantes, assinado por Henrique IV em 1598, que garantia na França a tolerância religiosa do Estado e do rei católico. Na Inglaterra, o rei Henrique VIII havia iniciado um cisma que colocava a Igreja sob sua autoridade e abria a porta às lutas religiosas entre anglicanos, católicos, presbiterianos e puritanos, e que só cessaria pela reafirmação, em 1662, da Igreja anglicana e pela ata de tolerância de 1689.
O monge Martinho Lutero abriu um novo período na história do mundo. Ele abriu o caminho para o fortalecimento das nações militarizadas, para o estabelecimento de uma divisão durável de Estados que se tornaram independentes de toda obrigação de fidelidade ao papa.
As religiões protestantes seriam acolhidas com grande consideração nos Estados Unidos onde o catolicismo era minoritário. Não havia nenhum inconveniente para os Estados protestantes em se proclamarem deístas, já que a Igreja romana universal não possuía nenhuma influência em seus negócios, e as várias Igrejas protestantes eram submetidas à constituição do Estado.
Apesar das lutas entre as seitas, os Estados Unidos deveriam tornar-se um modelo de tolerância, mas sempre ligados aos valores da moralidade cristã. O protestantismo, favorecendo a atividade financeira, mercantil e industrial, era a religião da maioria dos americanos, que gravavam o nome de Deus em seus bilhetes de banco: in God we trust! A herança de Lutero foi a formação de um capitalismo encorajado pelo Estado liberal, que se dizia fiel à transcendência divina.
Pequena Cronologia
Lutero
- 1517: Fixação, pelo monge agostiniano Martinho Lutero (nascido em 1483), das 95 teses contra as Indulgências do Papa. É uma declaração de guerra.
- Outubro de 1518: Lutero recusa-se a se retratar na Dieta de Augsbourg e refugia-se em “Wittenberg sob a proteção do Eleitor de Saxe Frederico II.
- 1519: Disputa de Leipzig com Eck.
- 1520: Ruptura com Roma. Publicação das três obras reformadoras: A nobreza cristã da nação alemã — Do cativeiro babilónio da Igreja — Da liberdade cristã.
- 15 de junho de 1520: O papa Leão X condena Lutero por meio da bula Exsurge Domine.
- Abril de 1521: Lutero comparece diante do imperador na Dieta de Worms. Ele é banido do império e esconde-se em Saxe, na “Warburg.
- 1524: Casamento de Lutero com Katharina von Bora, uma cisterciense que abandou o hábito.
- 1525: Lutero toma partido contra os camponeses revoltosos.
- 1525: Albert de Brandebourg confisca os bens da Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, da qual ele é grão-mestre, para fundar o ducado da Prússia.
- 1525: A primeira Igreja luterana do Estado é fundada em Saxe.
- 1526: Dieta de Spire. Carlos V aceita o princípio da liberdade religiosa no conjunto das cidades e dos Estados.
- 1530: Lutero aprova as teses conciliadoras desenvolvidas por Mélanchton na Confissão de Augsbourg.
- 1530: Liga de Smalkalde.
- 1533: Cisma de Henrique VIII na Inglaterra.
- 1546-1555: Guerra de religião na Alemanha.
- 1555: Paz de Augsbourg. Para cada Estado sua religião.
Calvino
- 1509: Nascimento de João Calvino em Noyon (Picardia).
- 1516: Na França, o cenáculo de Meaux estabelece os princípios de um humanismo reformador.
- 1516: Pela Concordata de Bolonha o papa Leão X oferece tantas vantagens políticas e financeiras a Francisco I, que este não tem nenhuma razão para abraçar o protestantismo.
- 1526: Começo das perseguições na França. O padre Jacques Pauvent e o humanista Bercquin são queimados.
- 1533: Discurso favorável de Calvino a Lutero diante da Universidade de Paris. Calvino foge para a corte da rainha Margarida de Angoulême em Nérac, e depois para Bale.
- 1534: Caso dos armários. A missa católica é condenada em um libelo fixado na porta do quarto do rei.
- 1536: Institutio religionis christianae de Calvino. Ele se fixa em Genebra, por sugestão de Guillaume Farei.
- 1540: Edito de Fontainebleau: repressão organizada pelo rei da França Francisco I contra a heresia.
- 1541-1559: Calvino reforma a cidade de Genebra, que se torna a capital do protestantismo.
- 1560: Conspiração de Amboise.
- 1560 e seguintes: Surgimento dos puritanos na Inglaterra. Eles querem abolir a hierarquia religiosa mantida pelo anglicanismo.
- 1562: Massacre de protestantes em Wassy. Começo das guerras de religião.
- 1562: Ata de uniformização da Igreja anglicana.
- 1572-1604: Perseguições antipuritanas na Inglaterra e emigração dos puritanos da Holanda para a América.
- 1564: Morte de Calvino em Genebra.
- 1598: Edito de Nantes. Os protestantes são tolerados durante o reinado de Henrique IV, que é católico. Eles obtêm garantias precisas.
- 1612: Surgimento das seitas dos batistas na Inglaterra, que reunirá nos Estados Unidos 21 milhões de fiéis.
- 1620: Instauração de um Estado teocrático puritano em Massachusetts nos Estados Unidos. Caça às bruxas. Perseguição aos batistas e aos quackes pelos puritanos.
- 1649: República puritana de Cromwell na Inglaterra.
- 1660: Fim da revolução puritana com a restauração dos Stuart.
- 1685: Revogação do Edito de Nantes por Luís XIV, emigração de 200.000 huguenotes e novas guerras de religião, como as dragonadas e a revolta dos protestantes de Cèvennes, conhecidos como “lês camisards”.
- 1689: Ata de tolerância na Inglaterra. Fim das perseguições antipuritanas.
- 1691: Constituição de Massachusetts. Tolerância imposta por Londres em sua colônia.
- 1787: Edito de tolerância de Luís XVI, que restitui a situação civil para os protestantes. A liberdade religiosa será estabelecida pela Constituição americana.
- 1801: Concordata na França entre o Primeiro Cônsul e o papa. Os protestantes são incluídos na Concordata pelo Primeiro Cônsul. A tolerância é garantida pelo Estado.