A experiência religiosa medieval era diversificada mesmo com a forte presença institucional e atuação da Igreja Católica, que buscava estabelecer o domínio hegemônico sobre a doutrina cristã. Além da persistência de algumas influências pagãs, manifestações divergentes e heterodoxas da vivência com o cristianismo também tinham espaço entre os fiéis e desafiavam a autoridade papal. No meio desta diversidade estavam movimentos ativos como o dos cátaros e valdenses, além de comunidade como as beguinas, que reuniam mulheres em comunidades que devotavam suas vidas à fé sem o cumprimento de votos formais diante da igreja. Existiam ainda as figuras místicas que expressavam sua devoção como uma espécie de relação direta e pessoal com Deus, frequentemente em desacordo com as regras estabelecidas pelo controle do papado e de suas instâncias hierárquicas. Muitos devotos místicos renegavam a teologia dominante, pregando visão transcendente que dispensava preceitos que eram determinantes para a Igreja Católica. Um exemplo notável neste cenário foi Marguerite Porete, uma beguina que adotou uma vida independente para viver sua fé e acabou virando um alvo da repressão inquisitorial.
Marguerite Porete nasceu na região de Hainaut (na atual Bélgica) por volta de 1250 e se tornou uma beguina ainda jovem, o que era uma alternativa viável para uma mulher que desejava se dedicar à religiosidade e aos estudos teológicos sem se tornar uma freira católica nem estar subordinada ao controle masculino. Ela foi viver numa beguinage, comunidade formada por outras mulheres que, assim como ela, resolveram seguir uma vida de relativa autonomia e sob rigorosa rotina religiosa, e logo se destacou nas discussões teológicas por sua incrível desenvoltura intelectual combinada com uma devoção profunda e fervorosa.
Por volta de 1300 ela escreveu o tratado místico “O Espelho das Almas Simples” (“Le Miroir des simples âmes”), e a circulação da obra provocou sérias controvérsias teológicas. Sua concepção de “alma simples” envolveu um profundo estado de confiança e união com Deus, levando o fiel a abandonar suas próprias vontades, apegos materiais, prazer espiritual, busca pela salvação e medo do inferno. Ela concebeu a noção de que a instituição religiosa visível era a “Igreja Menor”, dotada de ritos, regras e hierarquias, regida pela “razão” e pelas escrituras era incapaz de proporcionar a união com Deus, apesar de ter o mérito de proporcionar uma fase inicial de preparação espiritual. Por outro lado, a “Igreja Maior” era composta pelas almas que atingiram a união com Deus numa transcendência que dispensaria intermediários.
As complexas e transcendentes perspectivas de Marguerite Porete foram altamente desafiadoras para a Igreja Católica, pois contrariavam a autoridade eclesiástica e seu papel espiritual, além de dispensar a intercessão da Igreja e seus sacramentos no relacionamento com Deus. Além da manifestação oficial de advertência contra a religiosa, “O Espelho das Almas Simples” foi declarado herético pela Igreja Católica em 1306, sendo ordenada a destruição de suas cópias, embora teólogos também católicos não tenham considerado a obra totalmente condenável. Apesar das divergências, a religiosa foi convocada e presa pelas autoridades por manter, discutir e divulgar suas concepções teológicas.
O bispo de Cambrai estabeleceu o processo, que foi conduzido por William de Paris, encarregado de averiguar os indícios heréticos pregados pela insistente beguina. No decorrer do julgamento, Marguerite Porete manteve-se firme e convicta sobre sua posição, silenciando propositalmente quando provocada e quando foi exigido que ela renegasse sua crença e se retratasse perante a autoridade eclesiástica. Os debatedores indicados pela instituição para desacreditar os variados aspectos da obra se esforçaram para condenar a autora, acusada de desrespeitar a Igreja ao questionar sua relevância.
Marguerite Porete foi declarada culpada de heresia, sendo condenada à morte na fogueira. Sua execução ocorreu no início de junho de 1310, Place de Grève, em Paris. Ela tinha cerca de 60 anos de idade na ocasião. Sua obra, apesar de proibida, continuou circulando em âmbitos restritos e pode ter influenciado autores místicos posteriores como Eckhart de Hochheim (o Mestre Eckhart), perseguido pela Inquisição no século no final do século XIII e primeiras décadas do XIV, que também pregou a aniquilação do “eu” para a plenitude da elevação espiritual de forma direta e sem a necessidade determinante da instituição religiosa.
Estudos atuais sobre Marguerite Porete apontam sua relevância como intelectual, teóloga e figura que desafiou o poder da Igreja Católica em um contexto de crescente repressão que proporcionou, poucos anos depois, em 1231, o estabelecimento oficial da Inquisição, sob o papado de Gregório IX.
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