A vida durante a Alta Idade Média europeia era marcada por restrições que afetavam as mulheres nobres ou plebeias. A educação formal, que era uma possibilidade elitizada, estava restrita basicamente aos homens da aristocracia e para aqueles que seguiam a carreira eclesiástica. O acesso aos materiais escritos era igualmente limitado, pois poucas instituições possuíam acervos disponíveis ao público e os insumos para escritores, tais como pergaminhos e tintas, também não eram obtidos facilmente. As mulheres eram afastadas das atividades intelectuais, tendo suas rotinas voltadas prioritariamente para as práticas domésticas e serviços corriqueiros desvalorizados. A Igreja influenciava os papéis sociais e estabelecia expectativas consideradas adequadas para o desempenho de atividades ditas masculinas e ou femininas, desencorajando ou desconsiderando esforços e produções realizadas por mulheres em campos de atuação reservadas aos homens. Diante dessas circunstâncias, as mulheres eram excluídas da vida pública, raramente desfrutavam de direitos políticos, garantias legais e praticamente não exerciam influência social. As raras exceções diante desse quadro de marginalização eram mulheres de origens abastadas que conseguiram encontrar condições favoráveis para ampliar seus horizontes através da instrução e do acesso a posições privilegiadas. Uma dessas mulheres excepcionais foi Dhuoda de Uzès ou Dhuoda de Septimânia, que viveu no território francês no século IX durante o Renascimento Carolíngio.
O Império Carolíngio, estabelecido por Carlos Magno, que reinou de 768 a 814, não se sustentou por muito tempo após a morte de seu fundador, sendo fragmentado através de divisões e desentendimentos entre seus descendentes. Um desses herdeiros foi Luís, o Piedoso (ou Luís I da França), cujo legado foi disputado pelos filhos através de um processo conhecido como Guerra Civil Carolíngia (830-843), apaziguada pelo Tratado de Verdun. Durante esse processo, a nobreza esteve envolvida nas causas dos postulantes ao poder através de alianças nem sempre sólidas e de relações sujeitas a conflitos, conspirações e perigos das conexões de lealdade ou divergência. Identificar esse contexto é importante para compreender a vida e a situação de Dhuoda, pois sua experiência esteve muito ligada às condições dessa complicada trama política feudal.
Sabe-se, apesar da falta de registros, que Dhuoda nasceu na nobreza franca ou germânica por volta do ano 800 e sua origem nobre é atestada pela condição de erudição incomum para uma mulher em sua época e por sua união com um nobre feudal. Por volta de seus 24 anos ela se casou com Bernardo de Septimânia, Conde de Toulouse e Marca da Septimânia, que também tinha a cidade espanhola de Barcelona como parte de seus domínios. O marido era uma liderança militar importante, pois suas terras estavam nas fronteiras com o mundo muçulmano da Península Ibérica e o feito de manter seu território intocado pelos “infiéis” era sinal de força, comando e disponibilidade de um efetivo considerável de cavaleiros e soldados. Dhuoda e Bernardo tiveram dois filhos: Guilherme e Bernardo. O convívio da mãe com seus dois meninos não foi duradouro, pois Guilherme foi levado para a corte e Bernardo foi levado pelo pai mesmo antes de receber um nome. O afastamento ocorreu por motivos políticos. O conde era uma personalidade influente na corte e conselheiro de Luís, o Piedoso, o que fazia dele um agente político relevante e ao mesmo tempo alvo de inimigos poderosos. Com a morte de Luís e a ascensão de Carlos, o Calvo (ou Carlos II da França), a situação de Bernardo se complicou, pois ele não demonstrava muita simpatia pelo sucessor quando se instalou a guerra civil entre os pretendentes ao trono. Para atenuar o desgaste e lidar com o ambiente de desconfianças e instabilidades que prevalecia naquele contexto, o conde recorreu ao antigo costume dos nobres de enviar um de seus filhos para a corte como uma espécie de garantia de lealdade ou como maneira de forçar a obediência através do medo de uma retaliação contra a vidas do herdeiro, que passou a ser praticamente um refém enquanto também constituía seu vínculo de fidelidade forçada ao novo monarca. Mesmo assim, Bernardo não conseguiu evitar cair em desgraça ao negar prestar obediência, acabando fugindo sob acusações de traição, bruxaria e por ter se envolvido com a viúva do rei Luís.
Afastada da família por força das contingências, Dhuoda precisou viver isolada em uma propriedade em Uzès, no sul da França. Ela reconhecia os riscos da situação do marido e dos filhos e decidiu escrever sobre seus sentimentos e expectativas na forma de um detalhado texto apresentado como uma longa carta endereçada ao seu filho mais velho, Guilherme. A obra, intitulada “Liber Manualis”, foi escrita em latim entre 841 e 843 é um registro angustiante de uma mãe afastada de um filho e privada de cumprir o seu papel de orientadora de maneira pessoal e direta. A autora dividiu o material em uma estrutura composta por prefácio, capítulos e um tópico poético de encerramento e o escrito tem a forma de um verdadeiro manual para a vida de seu primogênito, que já tinha mais de 16 anos na ocasião. Sendo uma pessoa profundamente religiosa e conhecedora profunda dos preceitos bíblicos, ela dedica significativa parte de seus ensinamentos à formação espiritual do filho, prescrevendo orações, recomendando os salmos que considerava mais relevantes e ressaltando a importância de seguir os fundamentos cristãos com devoção. As frequentes citações de trechos da Bíblia indicam a familiaridade da autora com o conteúdo do livro sagrado num nível de conhecimento incomum para uma mulher que não fazia parte de uma ordem religiosa na condição de uma freira bem formada. Além de se preocupar com a vida espiritual do rapaz, Dhuoda apresentou princípios de moralidade e conselhos para a vida social, alertando a respeito da volatilidade do poder e como isso poderia afetar a situação de Guilherme, mas enfatizando que ele deveria ser leal ao pai. Entre referências bíblicas e manifestações de cunho pessoal, ela também demonstrava sua erudição através de citações diretas e indiretas de autores como Gregório de Tours, Agostinho de Hipona e outros pensadores, sinalizando que ela era uma leitora atenta que reconhecia a relevância dos temas discutidos por outros autores. Em um poema que encerrou sua longa carta ao filho, ela apresentou um tom melancólico como forma de despedida, consciente de que os dois provavelmente nunca mais se encontrariam.
A tragédia temida por Dhuoda acabou sendo consumada. Primeiramente, em 844, com a execução do marido, que optou pelo apoio ao irmão de Carlos na disputa pelo poder na guerra entre os filhos de Luís I. Guilherme seguiu a decisão de Bernardo e se envolveu em uma conspiração contra Carlos. Seguindo a inspiração da mãe, ele chegou a dominar Barcelona, reivindicando o título de conde que pertenceu ao seu pai, mas sua resistência foi encerrada em 850, quando foi derrotado por aliados do rei. Não se sabe se Dhuoda ainda estava viva quando esse desfecho infeliz aconteceu, pois não existem evidências a respeito de seu paradeiro depois da conclusão de “Liber Manualis”. Seu filho Bernardo também se insurgiu contra Carlos, mas teve uma sorte melhor e se tornou senhor feudal no reino germânico. Uma suposta filha mais jovem da autora pode ter existido, segundo relatos posteriores, embora ela não seja citada no texto da mãe que também tem um relevante aspecto biográfico.
“Liber Manualis” não é a primeira “publicação” medieval feminina, mas certamente é um dos primeiros registros escritos produzidos por uma mulher. Durante o século VI, Radegunda de Poitiers, a rainha dos francos que abandonou a coroa para ser freira e posteriormente foi consagrada santa, escreveu uma série de cartas e poemas com prescrições, conselhos e louvações religiosas, contudo, o material elaborado por Dhuoda é a única obra feminina do período carolíngio que sobreviveu ao tempo, sendo reproduzido por copistas ao longo da Idade Média, com exemplares identificadas na França e na Espanha. Sua única obra conhecida se enquadra no gênero de instrução chamado specula principum (“espelho de príncipes”), que consiste no tipo de produção literária que expressa ensinamentos voltados aos nobres. Apesar de não ser uma conselheira política, mas uma mãe que expressou seus sentimentos e fé, Dhuoda também tratou de aspectos principiológicos, morais e práticos relativos à conduta da pessoa para quem dedicou seus escritos, conscientizando o jovem Guilherme sobre as tramas políticas e abordagens diante dos riscos de seu status no tumultuado cenário do poder, o que evidenciava sua percepção sobre articulações, posicionamentos e estratégias. Esta categoria de escrita tem em “O Príncipe”, de Maquiavel, o seu mais reconhecido exemplo.
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