Em contextos nos quais os papéis sociais eram rigidamente determinados para os gêneros, com franca desvantagem feminina diante das opções disponíveis, várias mulheres resolveram recorrer a artifícios inusitados em busca de autonomia, realização ou sobrevivência. O disfarce masculino virou um artifício viável para lidar com as restrições, embora diante de riscos consideráveis.
A britânica Mary Lacy (1740-1795) foi uma das tantas mulheres que se passaram por homens para exercer uma ocupação masculina. Ela teve infância e adolescência marcadas por privações, dificuldades e repressão doméstica até decidir fugir de casa aos 19 anos fingindo ser um homem identificado como William Chandler. Ela foi até a cidade portuária de Portsmouth, onde se alistou como aprendiz de carpintaria naval num estaleiro. O treinamento era árduo, com tarefas físicas desgastantes e por vezes perigosas. Durante esta fase de aprendizado ela vivia em condições severas sem remuneração, sem abrigo e sem alimentação regular, contando com a caridade alheia para sobreviver. Maus tratos e insultos também faziam parte de sua situação de vulnerabilidade, mas a determinação de se qualificar como profissional e obter um emprego regular.
Depois de se dedicar a serviços temporários e precários para sobreviver nos onze anos anteriores, em 1770, ela finalmente obteve o registro profissional como carpinteira naval, o que permitiu que pudesse obter um emprego registrado e a possibilidade de fazer uma carreira especializada de construção de embarcações. Mary era uma carpinteira talentosa que manejava com destreza as ferramentas utilizadas no serviço e trabalhou na construção de navios novos e na execução de reparos e manutenção de embarcações que já estavam em operação. Além do corte e modelagem de peças de madeira, ela trabalhava no meticuloso serviço de montagem estrutural de navios e acumulou tamanha perícia na prática que também foi aproveitada pelo estaleiro como instrutura e supervisora de treinamento de novos operários da construção naval.
Era um trabalho desempenhado coletivamente, então Mary lidava com diversas pessoas no ambiente de trabalho, situação que envolvia riscos de ser descoberta como uma mulher usando uma identidade masculina. Na informalidade de meio um predominantemente masculino, conversas sexistas e comportamentos com apelos másculos, não faltava quem desconfiasse de que aquele carpinteiro franzino e de conduta moderada não eram igual aos demais, mas ela conseguia com habilidade manter o disfarce sem levantar suspeitas significativas. Para favorecer sua aceitação, ela participava das bebedeiras com os colegas, dividia um quarto com um deles com o cuidado de não ser descoberta e até chegou a frequentar um bordel em companhia de trabalhadores do estaleiro.
Apesar do êxito na omissão de sua identidade verdadeira, Mary vivia em constante estado de alerta e medo de ser descoberta, sabendo das possibilidades de transtornos que isso acarretaria. Preservar sua falsa personalidade masculina exigia a necessidade de sustentar um segredo das demais pessoas, o que limitava suas interações sociais até fora do ambiente de trabalho. Ela conseguiu manter-se nesta situação por quase dois anos até ser obrigada pelas circunstâncias a revelar sua condição verdadeira, quando foi acometida por problemas de reumatismo decorrentes dos anos no serviço pesado da carpintaria desde os tempos de aprendiz.
Mary recorreu à Marinha Real Britânica solicitando os benefícios que eram resguardados aos construtores de navios, principalmente uma pensão que ara paga aos trabalhadores que prestaram serviços à instituição. Como Mary trabalhou com navios militares ela se qualificava para o benefício e, numa situação inédita, obteve uma resposta positiva diante de sua petição e encerrou sua carreira na carpintaria naval. Sua identidade masculina foi abandonada e ela reassumiu seu nome quando iniciou o processo de reconhecimento do trabalho para obter a aposentadoria.
Em 1772, iniciando uma nova vida, Mary resolveu registrar sua experiência no livro “The Female Shipwright” (“A Carpinteira Naval”), obra pioneira na condição de autobiografia de uma mulher abordando sua atuação em uma carreira técnica exercida por homens. Seu livro também documentou a rotina nos ambientes de trabalho da construção naval do século XVIII e foi amplamente discutido como exemplo de atuação da luta feminina pelas oportunidades de trabalho.
Há dúvidas sobre aspectos de sua vida após a aposentadoria do serviço de construção naval. Mary cita em seu livro um casamento com um certo Josias Slade, mas os registros da oficialização do tal matrimônio nunca foram identificados posteriormente por pesquisadores.
Depois de aposentada, aos 31 anos de idade, ela resolveu empreender no setor imobiliário na cidade de Deptford. Adquiriu lotes de terrenos e construiu casas para revender e alugar. A própria Mary, agora conhecida como Mary Slade, se encarregou dos projetos de construção e da execução do serviço de carpintaria nas obras. O empreendimento foi conhecido como “Slade’s Place” e Mary fixou residência em uma dessas casas, dividindo o espaço não com o tal Josias mencionado em sua autobiografia, mas com uma mulher chamada Elizabeth Slade. A natureza do relacionamento entre Mary e Elizabeth é incerto, pois elas se apresentavam para a comunidade como irmãs. Num registro póstumo à morte de Mary, em 1795, o suposto casamento dela com o Josias que ninguém conheceu é novamente colocado em suspeita, pois no obituário ela foi citada como “solteirona”.
O que é efetivamente relevante sua trajetória é o exemplo de superação e obstinação para o exercício de um trabalho masculino e para a conquista do sucesso como construtora e empreendedora numa sociedade que negava chances e autonomia para mulheres.
Referências:


[…] Mary Lacy: Uma Mulher que Desafiou o Sexismo e Conquistou Seus Sonhos […]