Thiess de Kaltenbrun, o “Lobisomem de Deus”

(Representação visual gerada pela IA Midjourney)

A força da crendice popular era uma influência importante para a formação de um ambiente de temor ao sobrenatural e ao desconhecido nos idos do século XVII, motivando a adoção de providências para lidar com o mal que rondava através de misteriosas manifestações. A caça às bruxas foi um dos fenômenos verificados na época, envolvendo preceitos religiosos e exercício de controle social para reagir contra praticantes das artes ocultas e tidas como malignas, além de outras situações sobrenaturais igualmente condenadas e temidas por suas conexões demoníacas. 

Neste contexto, na Livônia sueca, atual Letônia, ocorreu um estranho caso envolvendo o camponês Thiess de Kaltenbrun. Na época, a região que foi dominada por uma elite germânica passava pelas agitações das disputas territóriais e reivindicações de domínio que se resultavam em conflitos como as Guerras Polaco-Suecas (1600-1629) e Guerra do Norte (1655-1660). Por ocasião do controle sueco sobre a Livônia, havia por lá uma variada influência de culturas, que incluíam os católicos e até remanescentes de adeptos dos tradicionais cultos pagãos,enquanto os suecos estavam promovendo uma franca ampliação do luteranismo para reduzir a influência católica e eliminar os resquícios de antigas crenças locais. Era um cenário propício para as perseguições religiosas.

Thiess de Kaltenbrun eram um idosos que já contava com mais 80 anos de idade e vivia na cidade de Jürgensburg, onde era conhecido na comunidade por ser curandeiro e praticante de artes e ritos da crença popular típica na região desde longínquas gerações e que que foi relativamente tolerada mesmo depois da cristianização. Seu envolvimento na complicada situação da repressão religiosa ocorreu casualmente em 1691, quando foi convocado pelas autoridades para depor numa investigação sobre um furto na igreja, já que conhecia o suspeito pelo delito. 

Enquanto testemunhava sobre a situação para a qual foi intimado, Thiess resolveu falar demais e fez confissões surpreendentes. Ele alegou que era um lobisomem diferente das temidas bestas do tipo que estraçalhavam vítimas nas florestas. Segundo seu testemunho, ao se transformar no lobisomem ele tinha a capacidade de ir até o Inferno, onde lutava contra o próprio Diabo. O idoso disse que, assim como ele, existiam outros “Cães de Deus” que assumiam a forma animalesca e lutavam contra o mal terreno e sobrenatural. Para assumir a forma de lobisomem, ele respirava em um jarro mágico e partia para realizar suas ações benéficas, que incluíam perseguir ladrões de gado que atormentavam as redondezas. Sua confissão incomum incluiu até embates contra bruxas num plano infernal.

O tribunal composto por luteranos cobrou do ancião o alinhamento aos preceitos da igreja reformada, mas Thiess justificou que não tinha idade para compreender a nova igreja e suas regras, então permaneceu fiel à crença que seguiu por toda sua vida. No final do julgamento, o homem foi condenado por praticar heresias e não frequentar a igreja e desviar pessoas da fé luterana, mas sua vida foi poupada. Apesar de prestar um depoimento cheio de inconsistências, ele foi condenado a receber dez golpes de açoite e ao banimento permanente da comunidade de Jürgensburg, não havendo registros sobre o que ocorreu depois disso.

O caso de Thiess, o Lobisomem de Jürgensburg, envolve aspectos como a força persistente da crença popular enraizada nas vidas de seus adeptos em confronto com a imposição de pressões religiosas e sociais. O documento que transcreve os fatos é produto dos julgadores, trazendo a perspectiva de quem estava em posição dominante, impondo seu controle e marginalizando o que havia de divergente. O velho curandeiro também poderia ser alguém que padecia de distúrbios mentais delirantes ou recorreu a uma estratégia esperta e inusitada diante das autoridades para se defender de uma situação bem real como um inquérito criminal, desviando o foco da situação que o levou a depor e outras complicações que poderia evitar. 


Referências: