A Emparedada da Rua Nova: A obra literária que virou lenda urbana

(Representação visual gerada pela IA DALL-E)

Uma história sobrenatural popular em Recife envolve a figura da Emparedada da Rua Nova, entidade fantasmagórica na forma de uma moça que sofreu um destino cruel ao ser emparedada viva pelo próprio pai como punição por um envolvimento amoroso proibido e gravidez vexatória em fins do século XIX. A disseminação da narrativa foi reforçada por relatos sobre as sombrias aparições da fantasma, além de gemidos lúgubres e pedidos de socorro que teriam sido ouvidos por moradores e frequentadores da tradicional rua do centro da cidade ao longo dos anos.

A assombrosa lenda urbana tem uma inspiração literária claramente associada à obra “A Emparedada da Rua Nova”, escrita por Carneiro Vilela, publicada originalmente em várias partes no formato folhetim entre 1909 e 1912 , com veiculação no já extinto “Jornal Pequeno” e posteriormente compilada como livro.

O enredo envolve paixão romântica, relações familiares conturbadas, crime, mistério, investigação policial e um panorama da sociedade recifense dos anos 1880. O ponto inicial da trama é a descoberta de um cadáver em avançado estágio de degradação biológica que foi localizado no Engenho Suaçuna, em Jaboatão, cidade vizinha de Recife. Depois de minuciosa investigação, apesar das condições precária, o defunto acabou sendo identificado como Leandro Dantas, um importante elo da cadeia trágica da história. Ele era um libertino sedutor que rondava os círculos sociais da cidade lançando seu charme sobre mulheres e em suas caçadas românticas num evento social conheceu Josefina, uma senhora casada formosa de encantos plenamente vívidos. Os dois iniciaram um caso sigiloso, evitando escândalos e o marido de sua amante, Jaime Favais, um próspero negociante de temperamento rígido e imprevisível. Josefina e Jaime tinham uma filha, a bela Clotilde, moça sonhadora em pleno frescor da vitalidade, que acabou também se rendendo aos encantos de Leandro ao se conhecerem em outra ocasião, iniciando um relacionamento em segredo.

Clotilde, Leandro e Josefina
(Representação visual gerada pela IA Leonardo)

A família Favais mantinha um relacionamento aparentemente respeitoso e se apresentava como um modelo exemplar naquela sociedade até que Leandro cruzasse seus caminhos. O galanteador envolvido romanticamente com a mãe e com a filha sabia dos vínculos entre as duas, embora elas desconhecessem que compartilhavam o mesmo amante secreto. Jaime andava desconfiando de que havia algo diferente e suspeito nos comportamentos da esposa e da filha e em uma situação de confronto doméstico, Josefina revelou a identidade do homem com quem vinha mantendo um vínculo adúltero, chocando ao mesmo tempo sua filha e seu marido, que se sentiu traído por ambas.

Com a honra e sentimentos feridos, Jaime resolveu eliminar o pivô de sua vergonha e, ao atrair Leandro para uma armadinha, executou o ato premeditado de assassinato do corruptor de sua mulher e sua filha. A execução da vingança não trouxe paz nem contentamento para Jaime, que precisou ir embora para Portugal logo depois do crime, abandonando sua vida em Recife. Deixou Josefina e Clotilde no sobrado da família, situado na Rua Nova. Ao longo do tempo que ficou foragido, ele conseguiu ficar impune e escapar das repercussões legais de seu ato, mas outros efeitos não deixaram de ocorrer. Josefina entrou em um severo estado de depressão, perdeu a vontade de viver e acabou sucumbindo diante da morte, enquanto Clotilde, outrora animada e feliz, se transformou em uma pessoa isolada e apática. Jaime retornou para casa e passou a ser atormentado pelas lembranças e pela imaginação de que Josefina e Leandro estariam atormentando sua mente desgastada e sua consciência pesada pela culpa e remorso, enquanto a família (ou o que sobrou dela) passou a servir de motivo de comentários maliciosos na comunidade. A desonra ao bom nome da família acabou sendo inevitável.

Os personagens da obra de Carneiro Vilela, aprisionados ou emparedados por seus dramas, acabaram tomando uma outra existência quando história do livro acabou inspirando uma trama alternativa como uma assombração marcante no folclore da cidade. Os elementos de tragédia e mistério da criação literária foram sendo reelaborados por diversos narradores até que a imaginação popular produzisse a lenda da Emparedada da Rua Nova na forma de ser sobrenatural. Embora o livro não contenha a realização do ato físico do emparedamento de alguém e a pessoa assassinada venha a ser Leandro, o malassombro derivado do livro e incorporado pela crendice contém a história trágica da jovem que foi condenada à inanição por trás de uma parede convertida em sua sepultura oculta numa casa na Rua Nova. A motivação do crime no livro é essencialmente a vingança, enquanto na lenda prevalece o desejo de ocultar uma vergonha íntima e moral. A relação familiar complicada do livro é simplificada na história de terror pelo ato extremo de um pai violento. Os tormentos emocionais explorados por Carneiro Vilela cedem lugar para os fenômenos do além manifestados pela pálida mulher fantasma conhecida como a Emparedada da Rua Nova como se esta fosse sua própria identidade. O livro é uma obra ficcional, mas a lenda reivindica seu fundo de veracidade como se fosse baseada em fatos.

A Emparedada da Rua Nova virou parte do patrimônio recifense na literatura e nos medos através dos sussurros e do vislumbre de fantasma.


Referências: