Guinefort, o cachorro que virou santo na Idade Média

(Representação visual gerada pela IA Midjouney)

A Idade Média foi um período fértil em elaborações de narrativas incríveis associadas à fé e religiosidade popular. Num cenário de crenças cheio de persistentes referências pagãs, a ideia da intercessão divina através de figuras dotadas de virtudes elevadas e poderes além da mera capacidade humana era atrativa para os fiéis em sua incessante busca espiritual. A hagiografia medieval acabou sendo uma variada composição de narrativas sobre santos e seus feitos miraculosos. As histórias eram muitas vezes inspiradas em elementos lendários e fantásticos, disseminadas oralmente e através de registros escritos frequentemente anônimos que se popularizaram localmente ou que se espalharam por onde houvesse gente disposta a crer. Uma característica comum em tais narrativa é a insuficiência de elementos como indicação de identificação de pessoas envolvidas, falta de precisão a respeito de locais e crolologia, deixando as circunstância cheias de indefinições que são preenchidas pela imaginação e credulidade.

Um dos casos mais curiosos envolve uma figura santificada pela crença popular que era muito especial porque sequer era humana. Trata-se da história de São Guinefort, um cachorro da raça galgo inglês ou greyhound que foi venerado entre a população de Dombes, na França, a partir do século XIII.

Conforme a história, um certo cavaleiro que vivia na região resolveu sair de sua propriedade para caçar e deixou seu fiel cão Guinefort de guarda, pois o recém-nascido herdeiro do nobre estava em casa. Depois de algumas horas, o homem voltou para seu lar e encontrou uma cena pavorosa de sangue espalhado pelo chão e de coisas reviradas no recinto no qual ele deixou a criança, que não foi imediatamente vista no local. Diante desta visão preocupante, ele avistou o cachorro lambuzado de sangue, concuindo que o animal atacou o bebê. Impulsivamente movido pela pela fúria, o pai sacou sua espada e golpeou Guinefort, que caiu morto aos seus pés. Para o espanto do cavaleiro, logo em seguida, o choro de seu filho foi ouvido, revelando que que criança estava salva. Perto do bebê, foi encontrada uma grande serpente venenosa morta que foi estraçalhada pelo cachorro, que, afinal, não agrediu a criança e, em vez disso, salvou a sua vida.

Comovido pela situação e sentindo remorso por ter matado injustamente o cachorro que agiu heroicamente, o cavaleiro sepultou Guinefort em um poço, plantando árvores e montando um jardim ao redor. A história rapidamente se espalhou pela região ao longo dos anos e o local do enterro do cachorro virou um santuário frequentado pela população camponesa. Mães com crianças doentes visitavam este santuário pedindo proteção para seus filhos, realizando orações, acendendo velas e cumprindo rituais espontâneos acreditando que poderiam contar com a interseção de Guinefort. Também começaram a surgir rumores de graças alcançadas depois destas peregrinações e pedidos ao cachorro protetor, que passou a ser reverenciado como um santo pelos fiéis.

A disseminação oral da história e a veneração popular não agradou à Igreja Católica, que oficialmente renegou a devoção a um cachorro santificado. O inquisidor dominicano Étienne de Bourbon foi designado para acompanhar o caso e declarou que a veneração ao São Guinefort era heresia pagã e superstição, determinando a destruição do santuário, exumação e incineração dos restos do cachorro para erradicar a crença.

A oposição oficial da igreja não surtiu o efeito esperado e até inflamou ainda mais os fiéis que simpatizaram com a devoção ao santo canino. Campanhas de educação religiosa realizadas por pregadores também foram adotadas para desencorajar esse tipo de veneração popular, pois contrariavam a doutrina católica, mas a persistência obrigou a adoção de medidas punitivas como penalidades eclesiásticas que poderiam resultar em excomunhão dos insistentes. Durante a Reforma Protestante o caso da devoção a Guinefort foi utilizado pelos críticos como forma de satirizar a os católicos, mas até o século XIX ainda havia quem buscasse o local onde foi estabelecido o santuário clamando por milagres.


Referências: