A compreensão dos distúrbios psicopáticos e o conceito de “serial killer” são recentes, desenvolvidos ao longo século XX, mas homicidas que deixaram diversas vítimas são verificados historicamente muito antes disso. Chegou até a ser razoável imaginar que por trás do comportamento violento e assassino de certas pessoas poderiam estar operando estranhas forças ocultas sobrenaturais e malignas. Expressar o horror diante das terríveis ações de matadores que fizeram variadas vítimas poderia ir além da compreensão racional, então associar os crimes à atuação demoníaca ou outras formas de manifestações era comum no passado. A noção limitada do funcionamento da mente humana, da psicologia e dos distúrbios manifestados nos comportamentos motivava a ocorrência de crenças para justificar os aberrantes assassinos em série e aspectos como a licantropia, interpretação da transformação humana em uma besta selvagem na forma de lobo, eram aceitas em sociedades muito influenciadas por superstições.
Um dos casos de assassinos em série mais conhecidos envolvidos por esta atmosfera de crendices foi “O Lobisomem de Dole”, na França do século XVI. Os franceses já alimentavam assombrosas e antigas fábulas e lendas sobre homens que se transformavam em lobos, consagrando no imaginário popular a figura do “loup-garou” (“loup” é “lobo” e “garoul” um velho termo para se referir a “homem”), manifestação medonha de uma maldição, e um certo Gilles Garnier acabou sendo identificado como uma dessas criaturas nos idos dos anos 1570.
Garnier era um eremita que vivia na floresta que rodeava a cidade de Dole, na região de Franche-Comté. Como quase todo indivíduo que vivia isolado, ele já era visto com certa desconfiança pela comunidade local, condição que fazia dele um potencial suspeito para qualquer incidente ocorrido nos arredores. Ele não estava totalmente solitário porque contava com a companhia de sua esposa, com quem compartilhava sua pobreza e distanciamento dos moradores da cidade.
Para aflição e desespero dos cidadãos de Dole, algumas crianças começaram a ser dadas como desaparecidas em um período curto, o que resultou numa justificada situação de pânico. Foi iniciada uma caçada pela região em busca de respostas para o aterrador e misterioso caso, afinal, o perigo poderia estar à espreita nas sombrias áreas florestais e nos campos cheios de riscos ocultos. Para alimentar ainda mais as desconfianças de que algo muito sinistro estava acontecendo, não faltavam testemunhas alegando que viram uma criatura bestial rondando por lá ou mesmo realizando ataques brutais. Só poderia ser um desgraçado e maldito loup-garou!
Os preocupados e desconfiados caçadores de monstros acabaram chegando até a casa de Garnier, que foi levado à força para prestar depoimento. A confissão do homem pode ter sido produto de tortura, manifestação de uma mente perturbada ou simplesmente a declaração de práticas hediondas reais, mas Gilles Garnier acabou efetivamente confirmando assassinatos de crianças e adolescentes em seus domínios nas matas. Ele disse que certo dia saiu para caçar e encontrou uma estranha entidade que lhe ofereceu uma pomada com propriedades mágicas, que ele não recusou e tratou logo de usar. Depois disso ele adquiriu a habilidade caçadora de um predador selvagem e dominado por esta força sobrenatural acabou atacando uma menina que encontrou perdida no matagal, tendo comido na hora partes de seu corpo e ainda retirado mais de suas carnes para levar para casa, onde serviria a sua esposa. Ele voltou a atacar, mas na segunda abordagem foi visto e fugiu antes de concluir sua degustação. O suposto lobisomem confirmou ainda que entre novembro de 1572 e fevereiro de 1573 mais vítimas foram atacadas, estraçalhadas e canibalizadas por sua manifestação bestial que atuava independente de sua vontade como homem.
Diante da escandalosa confissão de Garnier, ele e sua esposa foram considerados culpados pelos grotescos e sanguinários fatos e executados na ardente fogueira destinada a quem desafiava a ordem divina e as leis terrenas.
Referências:


[…] Gilles Garnier, “O Lobisomem de Dole” […]