Serviço e mutilação: Os eunucos no Mundo Muçulmano

(Representação visual gerada pelas IAs Midjourney e Leonardo)

Um eunuco é um homem que foi castrado, o que significa que seus órgãos reprodutivos foram removidos. Historicamente, isso era feito muitas vezes sem o consentimento do indivíduo, geralmente quando eram crianças, para que assumissem papéis específicos na sociedade. A castração era usada para fins variados: alguns eunucos eram destinados a servir em haréns, garantindo que pudessem guardar as mulheres sem o risco de envolvimento sexual; outros serviam como funcionários públicos ou servos domésticos, onde a castração era vista como uma garantia de lealdade e de que não haveria descendência que pudesse reclamar herança ou poder. A exploração de eunucos revela as complexas relações de poder e as hierarquias sociais que caracterizaram épocas e culturas onde a castração era tanto uma forma de subjugação quanto um passaporte paradoxal para o acesso a esferas de influência inatingíveis para outros servos.

No caso das sociedades islâmicas, a presença de eunucos era bastante comum e eles podiam ser encontrados em diversas atribuições. Certamente, a mais imediata era a vigilância dos haréns dos poderosos. Um harém era um local onde mulheres eram mantidas em isolamento, e a presença de homens adultos poderia representar uma ameaça à segurança ou ao respeito da condição de que elas eram intocáveis para outros homens que não seus senhores ou maridos. Por serem castrados, era esperado que os eunucos não desenvolvessem desejo sexual e, assim, eram considerados confiáveis para o desempenho do serviço. A posição poderia render reconhecimento. Os Kislar Agha, que eram eunucos-chefes do harém do soberano do Império Otomano, por exemplo, eram tratados como figuras influentes e poderosas dentro do palácio, podendo ser considerados conselheiros de confiança e tendo acesso direto aos membros da família imperial. Era possível que um ocupante deste posto também exercesse funções nos assuntos religiosos, dirigindo as escolas corânicas e se especializando em aspectos importantes do direito muçulmano. Na Mesquita al-Masjid al-Nabawi, em Medina, na Arábia Saudita, encontra-se o túmulo de Maomé e o ambiente sagrado costumava ser guardado por eunucos, pois acreditava-se que homens castos e puros dos atos sexuais eram adequados para zelar pelo local de repouso eterno do Profeta. Os homens castrados poderiam ser reconhecidos como serviçais com mais tendência a manter sua lealdade porque não podiam deixar herdeiros, o que os tornava mais confiáveis e menos propensos a se rebelar contra seus senhores em nome de interesses pessoais.

Os eunucos eram em sua maioria estrangeiros adquiridos por meio da escravidão e o processo de castração ocorria em locais distantes dos mercados finais. O fator econômico também era importante nessa exploração, pois além de ser um comércio lucrativo, era mais barato e prático castrar os garotos escravos no local de origem, evitando os custos e riscos de transportá-los vivos. A decisão de castrar ocorrer em locais distantes do destino também pode ser atribuída a fatores culturais e religiosos, pois havia uma crença islâmica de que participar diretamente da castração era contra seus princípios, embora para explorar esses homens mutilados os mesmos princípios não contivessem nenhum embaraço. As principais fontes de abastecimento de eunucos eram da África Subsaariana, que se manteve como a principal fonte de abastecimento até o final do comércio, no século XIX. A idade em que ocorria a castração variava, mas os meninos geralmente eram castrados entre as idades de quatro e doze anos, com uma preferência aparente por meninos entre oito e dez anos. O processo de cicatrização durava cerca de um mês antes que os eunucos estivessem prontos para serem transportados. A castração era realizada por especialistas que possuíam conhecimentos e habilidades específicas para reduzir o risco de morte durante a operação. No entanto, mesmo com essas medidas, a taxa de mortalidade ainda era alta, variando entre 14% e 70% dependendo do período e local, além das frequentes sequelas que poderiam afetar a saúde dos castrados posteriormente. Eunucos eram também considerados ótimos presentes ofertados aos sultões, que recebiam os escravos como sinal de generosidade bajuladora daqueles que tentavam impressionar ou criar vínculos com os chefes muçulmanos.

A situação da exploração de eunucos acabou gradualmente entrando em decadência, pois ao longo do tempo, as normas sociais e as atitudes em relação à castração e aos eunucos mudaram. Com o aumento da influência de ideias humanitárias e direitos humanos, a prática começou a ser vista como bárbara e inaceitável. O contato e a influência crescentes do Ocidente, especialmente durante e após o período colonial, trouxeram novas normas e valores que muitas vezes entravam em conflito com práticas tradicionais, incluindo a utilização de eunucos. No Islã, sempre houve debates sobre a permissibilidade ética e religiosa da castração. Com o tempo, houve uma tendência crescente de considerar a prática como contrária aos ensinamentos islâmicos, o que também contribuiu para seu declínio. Além disso, a prática de castrar escravos para criar eunucos estava intrinsecamente ligada à instituição da escravidão. Com o declínio global da escravidão nos séculos XIX e XX, a prática de castração para criar eunucos também diminuiu.

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