Sexo e fé: O ritual mesopotâmico do Casamento Sagrado

(Representação visual gerada pelas IAs Mage e Leonardo)

Um dos aspectos mais intrigantes da sociedade mesopotâmica diz respeito à sexualidade associada aos ritos religiosos praticados pelos povos que viveram nas margens dos rios Tigre e Eufrates na Antiguidade. Além dos registros em sua rica mitologia de narrativas tórridas entre as entidades divinas, também existem discussões sobre práticas sexualizadas de rituais religiosos. Estudiosos argumentam que a popular deusa Inanna era vista pelos sumérios como divindade da sexualidade, e a denominação “deusa do amor” foi um eufemismo para enquadrar sua natureza no contexto do sentimento romântico, evitando o reconhecimento de sua essência sexual. A crença nela era de extrema importância para os antigos sumérios, pois a deusa também era responsável por aspectos vitais como a fertilidade, a saúde e a vitória em batalhas.

Um exemplo particularmente notável dessa relação entre sexo e religião envolve o rei Iddin-Dagan, terceiro soberano da Dinastia Isin. Acredita-se que durante seu reinado (1900-1879 a.C.) ocorria anualmente uma prática ritualística pública na qual o próprio soberano desempenhava um papel simbólico com o objetivo de promover a fertilidade e garantir colheitas abundantes. Fazendo alusão à relação amorosa e sexual entre a deusa Inanna (Ishtar) e Dumuzid, o rei representava o deus da agricultura, enquanto uma sacerdotisa ou a rainha, segundo outras interpretações, assumia o papel da deusa da sexualidade. A união do rei com a sacerdotisa ou rainha em um ato de copulação sagrada tinha a intenção de agradar aos deuses e garantir a fertilidade da terra.

Esse tipo de ato simbólico, que estudiosos denominaram “Casamento Sagrado”, representava a união entre divindades e tinha impacto sobre seus fiéis. Estes acreditavam que o ritual transcendia um ato sexual meramente físico: ao proporcionar prazer sexual à deusa, o rei garantiria que seu reino e seu povo fossem abençoados. Esse ato, realizado publicamente, era o ponto alto de um conjunto complexo de manifestações anuais voltadas para bons resultados agrícolas por intervenção divina. Desfiles de figuras sacerdotais, danças, batuques e rituais que incluíam homens sagrados que se autoinfligiam ferimentos faziam parte da grandiosa atividade religiosa.

Textos antigos apresentam hinos que detalham as etapas do encontro entre o rei e Inanna, vivido por uma mulher que personificava o poder da divindade naquela ocasião. Esses registros destacam a virilidade do monarca, capaz de satisfazer a própria deusa do sexo e, assim, proporcionar prosperidade às terras sob seu domínio.

“O rei aproxima-se do colo puro de cabeça erquida,
De cabeça erqguida aproxima-se do colo de Inanna.
Amaushnungalanna deita-se ao lado dela,
Ele acaricia o seu colo puro.
Quando a Senhora se estendeu na cama, no colo puro,
Quando Inanna se deitar na cama, no seu colo puro,
Ela faz amor com ele na sua cama,
Ela diz a Iddin-Dagan: ‘Tu és certamente o meu amado'”.

Iddin-Dagan pode não ter sido o único soberano sumério a desempenhar esse papel ritualístico. Esta prática e preocupação com a fertilidade agrícola poderiam ser intrínsecas à sociedade, fundamentais para o equilíbrio e prosperidade da comunidade, carregando também um profundo significado cultural e religioso. Visto que os reis eram considerados intermediários terrenos dos deuses, desempenhavam importantes funções religiosas, seja ordenando a construção de templos e santuários, seja atuando diretamente em diversos ritos, como a oferta de presentes, realização de sacrifícios e estabelecimento de contatos divinos, tendo no Casamento Sagrado sua expressão mais intensa.

A possibilidade de que esse tipo de celebração seja apenas uma invenção presente nos hinos, versos e orações também é especulada. Há especialistas que questionam a existência de evidências concretas desse ritual e afirmam que a falta de registros além dos textos literários torna improvável que o casamento sagrado tenha ocorrido de fato. O ato sexual de natureza divina entre o rei e uma mulher sagrada poderia ser uma metáfora, e não uma celebração carnal real e literal.

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