Dois séculos após o fracasso do rei espanhol Felipe II, o general corso ressuscitou o plano de invadir a Inglaterra por mar em 1803. A idéia empolgou os franceses, mas naufragou diante da superioridade da marinha britânica.
Por Claude Dufrense, publicado na revista História Viva (ed. 61)
No dia 18 de fevereiro de 1803, o embaixador da Inglaterra na França, lorde Whitworth, foi convocado por Napoleão Bonaparte para uma reunião no castelo de Saint-Claude. Os dois países viviam então um breve período de paz após a assinatura do Tratado de Amiens em 1802, que acabara com as Guerras Revolucionárias Francesas, mas o que Whitworth estava prestes a presenciar era o início da tempestade após a calmaria.
Contrariado com a insistência dos ingleses em descumprir certos pontos do tratado assinado há menos de um ano, Napoleão surpreendeu seu convidado com uma violenta saraivada de críticas contra os britânicos. Ao longo de cerca de duas horas, o embaixador inglês assistiu, praticamente calado e cercado pelos seus colegas diplomatas, a um verdadeiro ataque de cólera do primeiro-cônsul francês. “Muito bem! O Parlamento inglês vai se reunir. Esta será uma ótima ocasião para me criticarem! Vão me bombardear. Enquanto espero, vou contra-atacar! Por que nenhuma das condições do Tratado de Amiens foi cumprida por seu país?”, indagou Napoleão.

Bonaparte não esperou pela resposta. Recapitulou as queixas da França e disparou: “Vocês querem a guerra. Nós lutamos durante 15 anos. Já foi demais. Mas vocês ainda querem mais 15 anos e me forçam a isso!”. Voltando-se para os embaixadores da Rússia e da Espanha que, petrificados, assistiam à cena, tomou-os como testemunhas: “Os ingleses querem a guerra, mas se forem os primeiros a desembainharem a espada, eu serei o último a guardá-la. Eles não respeitam os tratados…”.
Whitworth não sabia o que fazer, ainda mais que, longe de se acalmar, Napoleão levantou ainda mais a voz: “Por que esses armamentos? Se vocês se armam, eu me armarei também. Vocês talvez possam massacrar a França, mas intimidá-la, jamais!”. Esperando acalmar a ira de seu interlocutor, ele abriu a boca, mas Bonaparte não o deixou dizer uma palavra: “Nós lutaremos em 15 dias… Malta ou a guerra!” Com essa ameaça, saiu da sala, deixando lorde Whitworth com suas preocupações.
Para além de toda a encenação, a mensagem de Napoleão era clara: segundo o Tratado de Amiens, a Inglaterra deveria ter evacuado a ilha de Malta a partir do mês de setembro de 1802, e ela não o fizera. Diante disso, Bonaparte concluiu que os ingleses pretendiam conservar Malta para garantir posições estratégicas no Mediterrâneo. De seu lado, a Inglaterra se queixava da anexação do Remonte (região que hoje pertence à Itália) pela França e da presença das tropas napoleônicas na Holanda. Na verdade, o governo britânico, apoiado secretamente pela Rússia e pela Prússia, desejava a retomada das hostilidades, contanto que a responsabilidade pelo fim da paz fosse atribuída à Franca.
Dado o recado ao adversário, Napoleão iniciou os preparativos para uma eventual retomada do conflito. Em 13 de abril de 1803 o primeiro-cônsul francês passou em revista 5 mil soldados no pátio do Carrossel, em Paris, diante de lorde Whitworth. Na ocasião, o embaixador inglês transmitiu ao ministro das Relações Exteriores francês, Charles-Maurice de Talleyrand, as propostas de seu governo: a Inglaterra continuaria a ocupar Malta ainda por dez anos, enquanto a França deveria evacuar a Holanda imediatamente. Tratava-e evidentemente de uma manobra grosseira destinada à opinião pública e o primeiro-cônsul rechaçou, indignado, as propostas inglesas. Tendo recebido a resposta que esperava, Whitworth pediu sua retirada do país no dia 2 de maio. Napoleão anunciou, então, seu plano de invadir a Inglaterra por mar: “Vou tentar a operação mais difícil, mas a mais fecunda em resultados extraordinários que a política já concebeu. Em três dias, um dia brumoso e circunstâncias um pouco favoráveis podem me fazer senhor de Londres”.
A notícia de que Napoleão tramava algo logo chegou aos ouvidos das autoridades inglesas. No dia 29 de junho, o relatório de um espião real responsável por monitorar as atividades do primeiro-cônsul informava o governo de Londres de que “após a partida do embaixador inglês, (Napoleão) dedicou-se três dias e três noites a um trabalho relativo às circunstâncias”.
Começou, então, a mobilização militar. Um contingente de 480 mil soldados foi destacado para os campos de treinamento organizados ao longo da costa diante da Inglaterra. Mas havia um problema: os tempos de glória da marinha francesa haviam ficado no passado. No momento da assinatura do Tratado de Amiens, em 1802, a Inglaterra dispunha de 189 navios de guerra, contra 47 da França. A maioria dos navios ingleses era superior aos franceses, tanto em tamanho quanto em armamento, e os oficiais ingleses eram mais experientes que seus adversários. Há anos os britânicos navegavam por todos os mares do globo, enquanto os franceses raramente deixavam seus ancoradouros.
Napoleão não tinha consciência de tudo isso. Apesar de ser um gênio militar nas batalhas terrestres, o general corso não tinha experiência em combates navais. Além disso, o líder francês não investira o suficiente na renovação da frota francesa após a paz de Amiens e contava com um ministro da Marinha, o almirante Denis Decrés, que estava longe de ser um grande capitão. O único que tentou abrir os olhos de Napoleão foi o ex-ministro da Marinha, almirante Laurent Jean François Truguet. Em uma carta enviada ao primeiro-cônsul em setembro de 1803, Truguet alertava Bonaparte de que “seria horrível ver fracassar uma operação na qual o senhor exporá sua pessoa, sua glória e as mais altas esperanças da nação que o senhor governa”.
Em uma eventual batalha naval contra a Inglaterra, a França contava com um único trunfo: o almirante Louis-René de Latouche-Tréville, herói da guerra de independência americana. Longe de alimentar um complexo de inferioridade em relação a seus futuros adversários, Latouche-Tréville estava disposto a atacar os ingleses, mas sua morte prematura o tirou do grande combate. Seu sucessor, o almirante Pierre-Charles Villeneuve, não estava à altura do antigo comandante.
Como se não bastassem todas essas dificuldades, Napoleão também ignorou uma invenção que poderia ter mudado completamente a história das batalhas navais. Enquanto as tropas francesas se preparavam na cidade de Boulogne, um artigo do JoumdL dês débats informava sobre os testes que o engenheiro americano Robert Fulton realizava com o primeiro navio a vapor da história, em pleno rio Sena. Quando consultado sobre a possibilidade de utilizar tal barco em seu projeto, Napoleão deu de ombros: “Há uma multidão de aventureiros oferecendo a todos os soberanos pretensas maravilhas que existem apenas em sua imaginação. São charlatões e impostores”. Quando voltou atrás já era tarde demais.
Apesar de uma pequena parte da população desconfiar dos planos de Napoleão, o projeto do primeiro-cônsul empolgou a maior parte dos franceses. Sugestões de planos mirabolantes para invadir o país vizinho não paravam de chegar ao escritório do senhor da França. Estimulado pelo entusiasmo popular, Bonaparte decidiu verificar pessoalmente os preparativos para a grande operação naval. Acompanhado de sua esposa Josefina, partiu em uma grande viagem pelo norte da França e pela Bélgica em julho de 1803. Depois de passar por Amiens e Etaples, onde foi recebido com carinho pela população, o casal finalmente chegou a Boulogne. O primeiro-cônsul se estabeleceu, então, naquela que deveria ser a base a partir da qual zarpariam os navios rumo à Inglaterra.
Durante os primeiros tempos de sua estadia em Boulogne o clima estava bom e estável, e Napoleão estava de muito bom humor. O entusiasmo aparece em uma carta enviada ao segundo-cônsul da França, Jean Jacques Cambacérès: “Tenho aqui, à minha volta, mais de 120 mil homens e. 3 mil barcos e chalupas esperando apenas um vento favorável para levar a águia imperial à Torre de Londres. Somente o tempo e o destino sabem o que acontecerá. Sejamos senhores do estreito durante seis horas e seremos senhores do mundo”.
A euforia, porém, durou pouco. O humor do futuro imperador piorava à medida que se dava conta de que os preparativos estavam atrasados, e que nem a construção das chalupas de desembarque nem o treinamento das tropas estavam concluídos. Finalmente, no dia 9 de julho partiu rumo a Calais, Dunquerque e Lille para dar continuidade ao seu périplo. Foi recebido com entusiasmo em cada uma dessas cidades, até chegar a Bruxelas, onde as demonstrações de apoio da população atingiram as raias do delírio. Em Anvers, um dos pontos de apoio da frota de invasão da Inglaterra, a animação popular atingiu seu máximo. Por fim, Bonaparte ocupou o ducado de Hanôver, na atual Alemanha, berço da família real inglesa.
De volta a Paris em agosto, o primeiro-cônsul continuou a dedicar toda atenção à futura expedição, traçando os planos de campanha da frota que, no dia fixado, rumaria para os locais de combate. A força principal da marinha francesa foi dividida entre os portos de Toulon, Rochefort e Brest. Ao largo de cada um desses portos o inimigo estava à espreita e por isso seria preciso enganar a vigilância dos navios ingleses. Os franceses apostavam no elemento surpresa para despistar os adversários. Napoleão fez com que os ingleses acreditassem que ele programava uma nova campanha no Oriente Médio a fim de cortar a rota das índias. Foi, aliás, o que supôs o almirante Horatio Nelson, comandante da frota britânica.
PROJETOS DELIRANTES
Ao anunciar o plano de invadir a Inglaterra, Napoleão começou a receber as mais fantásticas sugestões para realizar o projeto. Em junho de 1803, o jornal Publiciste apresentava a Thilorière, um imenso balão capaz de transportar 3 mil homens que abririam caminho para o resto da tropa em solo inglês. Em outra carta, não menos estapafúrdia, um correspondente propunha a Bonaparte enviar secretamente à Inglaterra uma dezena de agentes, cada um portando uma amostra do micróbio da varíola. Desse modo, a doença se espalharia rapidamente pela ilha, enfraquecendo a resistência à invasão. Por mais insensato que pareça esse projeto, o governo britânico enviou à França, em agosto de 1803, o eterno conspirador real Georges Cadoudal para assassinar o primeiro-cônsul. O projeto de homicídio fracassou, Cadoudal foi preso no ano seguinte e sua presença na França teve como conseqüência o seqüestro e execução do duque de Enghien.Os diversos projetos de invasão da Inglaterra incluíam o uso de balões e de um túnel subterrâneo.
No início de novembro de 1803, o primeiro-cônsul estava de volta a Boulogne para conduzir a primeira tentativa de cruzar o Canal da Mancha. Os marinheiros franceses chegaram a iniciar um duelo de artilharia com os navios ingleses, mas o mar estava ruim. Vários barcos de desembarque afundaram e a tripulação foi lançada ao mar. Durante toda a noite do dia 7 de novembro, o próprio Bonaparte participou das operações de resgate. Na volta de uma dessas inspeções, o primeiro-cônsul caiu na água e quase se afogou. Houve uma comoção à sua volta, enquanto ele alcançava a margem rindo: “Foi apenas um banho!”.
Mesmo após esse primeiro ensaio frustrado, Napoleão ainda perseguiria por dois anos o sonho.de desembarcar na Inglaterra. Por muito tempo, a perspectiva de uma invasão francesa assombrou o governo de Londres. Ao voltar a ocupar o cargo de primeiro-ministro em 1804, William Pitt se apressou em enviar seus diplomatas às principais potências européias para negociar uma coalizão contra a França. Além disso, também buscava um meio de assassinar Bonaparte para afastar de vez a possibilidade de uma invasão estrangeira a seu país.
Por fim, o sonho napoleônico de invadir a Inglaterra não se realizou. O projeto, várias vezes adiado ao longo de dois anos, foi finalmente abandonado após a Batalha de Trafalgar, em 1805, quando o almirante Nelson destruiu a força conjunta das armadas francesa e espanhola, consolidando a supremacia britânica nos mares. A partir de então, Napoleão mudou o foco de ação de suas tropas. O objetivo passou a ser a conquista da Europa continental.