Tommaso Campanella e a perigosa busca pela sociedade perfeita

O século XVI na Europa, particularmente na Itália, foi agitado por convulsões profundas que haviam abalado a estrutura herdada do período medieval. A Reforma Protestante, iniciada por Lutero em 1517, rachou o mundo cristão ocidental ao meio, desafiando a autoridade papal e gerando guerras religiosas sangrentas. Em resposta, a Igreja Católica lançou a Contrarreforma, um movimento que buscava reafirmar sua doutrina e combater as heresias, fortalecendo instrumentos como a Inquisição. A busca por uma pretensa pureza doutrinária tornou-se uma questão de vida ou morte, e o clima intelectual era de vigilância e suspeita, onde ideias novas eram frequentemente vistas como uma ameaça à ordem estabelecida.

Paradoxalmente, esta fase de fervor religioso e controle coexistia com o Renascimento e um processo de evolução científica. As descobertas de Copérnico desafiaram a visão geocêntrica do universo, enquanto as viagens marítimas revelaram novos mundos e culturas, desafiando tudo o que se sabia até então. Era um tempo de crises e possibilidades, onde as estruturas antigas tremiam, abrindo espaço para possibilidades audaciosas de novos começos para a humanidade.

Enquanto a Itália do final do século XVI navegava essas águas turbulentas, surgia uma figura cuja vida e obra sintetizariam todas essas tensões de forma dramática: Tommaso Campanella. Ele não foi apenas um espectador desse contexto conturbado, mas um produto direto dele, um homem que tentou forjar uma resposta para as crises de sua época, pagando um preço altíssimo por ousar.

Nascido como Giovanni Domenico Campanella em 1568, na pobre e rural Stilo, na Calábria — uma região então sob o domínio do Império Espanhol —, longe dos grandes centros culturais como Florença ou Roma. O sul de Itália era uma terra de contrastes, marcada pela opressão de nobres senhores de terras e por um fervor religioso intenso. Desde cedo, Campanella demonstrou uma inteligência prodigiosa e uma memória fora do comum, talentos que logo chamaram a atenção de um frade dominicano. Aos quinze anos, seguindo uma promessa familiar e em busca de educação, ele ingressou na Ordem dos Pregadores, adotando o nome de Tommaso em homenagem ao grande filósofo escolástico Tomás de Aquino. No entanto, o jovem que entrava no convento carregava dentro de si um espírito inquieto que logo se chocaria com a ortodoxia católica.

A formação de Campanella nos mosteiros dominicanos seguiu inicialmente o currículo tradicional, baseado no pensamento de Aristóteles, cuja autoridade era inquestionável para a Igreja. No entanto, sua mente inquisitiva não se satisfez por muito tempo com esse modelo. O ponto de virada em seu pensamento foi o contato com as ideias do filósofo natural Bernardino Telesio, que defendia que o conhecimento deveria ser baseado na observação direta dos sentidos e da natureza, e não apenas na autoridade dos textos antigos. Campanella abraçou essa nova filosofia com fervor, escrevendo sua primeira obra, Philosophia sensibus demonstrata (A Filosofia Demonstrada pelos Sentidos), em sua defesa. Esse rompimento com o aristotelismo escolástico marcou-o como um pensador perigoso e heterodoxo, colocando-o no radar da Inquisição pela primeira vez e lançando as bases para uma vida de conflito entre seu desejo de saber e os limites impostos pela autoridade religiosa.

Um dos pilares mais radicais do pensamento de Campanella, expresso em “A Cidade do Sol”, era a defesa de uma forma de comunismo de bens. Em sua sociedade utópica, ele propunha a abolição total da propriedade privada e da família tradicional. Tudo — desde habitações e alimentos até os resultados do trabalho — era considerado propriedade comum. Mais controverso ainda era sua aplicação desse princípio às relações humanas: os filhos, criados comunalmente pelo Estado desde o nascimento, não conheceriam seus pais biológicos. O objetivo era erradicar o egoísmo, considerado por Campanella uma consequência direta da propriedade e do apeito familiar, que gerava divisões sociais e corrupção. Para uma Europa rigidamente estruturada em monarquias, nobreza hereditária e uma forte moral familiar católica, essa ideia era não apenas utópica, mas profundamente subversiva e herética, pois desafiava a própria base da ordem social.

Outra ideia chocante era a sua visão sobre eugenia e reprodução, intrinsecamente ligada à sua crença na astrologia. Na Cidade do Sol, o acasalamento não era uma questão de amor ou escolha individual, mas uma prática meticulosamente regulada pelo Estado para “melhorar a raça”. Segundo sua proposta, os governantes-filósofos, com base em complexos mapas astrológicos, determinariam quais homens e mulheres deveriam unir-se para produzir filhos física e mentalmente superiores. Esta visão, que mesclava um proto-cientificismo com superstição, era polêmica por reduzir o ato de procriar a um mero instrumento de engenharia social, despojando-o de seu significado sacramental para a Igreja e de sua autonomia no âmbito privado. Era uma ideia que, em plena Contrarreforma, beirava a blasfêmia, ao colocar o destino das almas nas mãos de astrólogos e não nas de Deus.

Finalmente, Campanella articulou uma visão teocrática e panteísta do poder que servia a um fim revolucionário. Ele acreditava que o governante ideal — o “Metafísico” ou “Sol” — era aquele que conseguia unir o conhecimento divino, filosófico e natural em uma só pessoa. Este governante-sacerdote não derivava seu poder apenas da tradição ou da força, mas de seu saber superior, numa clara herança platônica. No entanto, Campanella usou essa ideia para justificar sua conspiração política contra os espanhóis no sul da Itália, pregando que era preciso estabelecer uma república teocrática baseada nesses princípios para iniciar uma nova era de harmonia universal, o “Século do Sol”. Para as autoridades, isso era extremamente perigoso: era uma doutrina que unia misticismo, rebelião política e uma reinterpretação radical do cristianismo, colocando a visão profética de um monge acima da autoridade do Papa e do Rei.

As controvérsias que promoveu causaram problemas para Campanella com as autoridades. Por conta disso, ele foi processado e preso pela Inquisição pela primeira vez ainda em 1594, iniciando uma longa história de fugas, prisões e interrogatórios. No entanto, seu crime considerado mais grave foi a tradução de ideias para a ação política, quando se tornou o cérebro de uma vasta conspiração na Calábria para derrubar o domínio espanhol e estabelecer uma república baseada em seus princípios utópicos.

A consequência direta dessa conspiração fracassada em 1599 foi a provação mais dura de sua vida: 27 anos de prisão em masmorras napolitanas, sob a acusação de sedição e heresia. Para evitar a pena de morte, Campanella recorreu a uma defesa desesperada e engenhosa: simulou loucura de forma tão convincente que suportou torturas terríveis, incluindo o suplício da “veglia”, onde foi suspenso por uma corda sobre um cavalete pontiagudo. Sua performance foi tão bem-sucedida que o salvou da fogueira, mas não da prisão perpétua. Foi nesse período de encarceramento, porém, que sua mente mostrou sua máxima resistência, pois nas celas úmidas de Castel Nuovo e Castel Sant’Elmo que ele escreveu, secretamente, suas obras mais importantes, usando a prisão não apenas como uma cela, mas como um laboratório forçado para seu pensamento.

Depois de cumprir sua pena, ele foi finalmente libertado em 1626, mas sua liberdade permaneceu precária e vigiada, principalmente em Roma, onde vivia sob o olhar atento da Inquisição. O ponto de virada final ocorreu em 1634, quando uma nova conspiração anti-espanhola na Calábria — da qual ele não participou, mas que foi inspirada em seu nome e ideias — colocou sua vida em risco novamente. Percebendo que nunca estaria seguro na Itália, Campanella, com a ajuda de influentes cardeais franceses que admiravam seu trabalho, conseguiu fugir disfarçado para a França. Essa fuga o afastou do sistema que o perseguiu por quase cinco décadas.

Na França, seu exílio transformou-se em uma espécie de reabilitação. Sob a proteção do Rei Luís XIII e, sobretudo, do todo-poderoso Cardeal Richelieu — que via em Campanella um símbolo útil contra os Habsburgos espanhóis e um intelectual de valor —, o velho filósofo foi recebido como uma celebridade. Ele teve permissão para publicar suas obras em uma edição completa, algo impensável na Itália, e frequentou os círculos intelectuais mais elevados de Paris. Seus últimos anos foram, portanto, uma ironia do destino: depois de uma vida de perseguição e prisão em sua terra natal, ele encontrou liberdade, honra e um patrocínio prestigioso no seio de uma nação estrangeira, onde veio a falecer em 1639, longe da cela que por tanto tempo fora seu mundo, mas provavelmente mais perto da paz que sempre almejou.


Referências: