Charley Parkhurst, o homem que era mulher e enganou o Velho Oeste

(Representação visual gerada por IA)

Às vezes, os segredos mais profundos sobre uma pessoa só são revelados após sua morte. Foi o que aconteceu durante a preparação do funeral de um homem solitário e rabugento chamado Charley Parkhurst em dezembro de 1879, na pequena Watsonville, na Califórnia. Parkhurst era reconhecido como um sujeito durão, daqueles que cuspiam tabaco, enchiam a cara de uísque puro e enfrentavam bandidos a tiros, mas o agente funerário fez uma descoberta que faria a cidade cair de ponta-cabeça em plena época do Velho Oeste: Charley Parkhurst era uma mulher, posteriormente com identidade original revelada como  Mary (ou, em algumas variantes, Charlotte). A notícia se espalhou como pólvora, transformando um funeral simples em um mistério histórico: quem era, de fato, aquela pessoa que havia enganado a todos para viver uma vida de liberdade e perigo extremo?

Parkhurst viveu durante o período de expansão do domínio territorial para o leste do território norte-americano, processo que se desenrolou por meio de de conflitos territoriais e extermínio da população nativa, impulsionado pela doutrina do “Destino Manifesto”, crença de que os EUA estavam predestinados a expandir seu território por toda a América do Norte. A Corrida do Ouro na Califórnia (1848-1855) foi outro fator importante na movimentação populacional, desencadeando uma migração em massa de cerca de 300.000 pessoas e o desenvolvimento de importantes centros urbanos. Além disso, a expansão para o oeste intensificou o debate nacional sobre a escravidão e proporcionou um forte acirramento entre facções favoráveis à exploração e abolicionistas, divergência que fez parte da Guerra Civil (1861-1865).

Charley Parkhurst viu de perto muitos aspectos importantes desse contexto complexo. Estima-se que seu nascimento ocorreu em 1812 no estado de Vermont, embora registros de censo posteriores também listem New Hampshire ou Massachusetts – as incertezas resultam da falta de registros documentais exatos. Sua infância não foi nada fácil e acabou indo parar em orfanatos, mas por volta dos 13 anos de idade resolveu fugir para tentar a vida por conta própria. 

A estratégia que adotou para conseguir oportunidades foi adotar uma falsa identidade masculina, quando passou a se vestir como um rapaz e a usar o nome Charley (apelido comum para o nome Charles). Arrumou um emprego como ajudante num estábulo e aprendeu a cuidar e domar cavalos, revelando ter um forte talento para esse serviço. Passou em seguida a dominar a arte de guiar carruagens e diligências, o que possibilitou importantes oportunidades de trabalho. 

O serviço de um “whip” (literalmente “chicoteador”) exigia conhecimentos sobre cavalos e mulas e habilidade para controlar composições de quatro, seis ou até mais animais. Além disso, eram fundamentais as técnicas de manobra das diligências para evitar capotamentos e proporcionar o cumprimento de prazos. Um condutor também deveria ser capaz de conhecer rotas, saber se localizar e estar preparado para proteger os passageiros e cargas transportadas. Tudo isso tornava a atividade extremamente perigosa e desgastante, pois os riscos de acidentes, dificuldades climáticas e os ataques de bandidos e indígenas exigiam grandes cuidados e esforços para lidar com os riscos a cada quilômetro dos itinerários em jornadas que podiam durar dias ou mesmo semanas, com pouquíssimas paradas.

Charley revelou notável desempenho em seu trabalho, realizando inúmeras viagens bem-sucedidas e consolidando uma reputação positiva. Seus feitos incluíam viagens em tempo recorde, fugas espetaculares e enfrentamentos ousados aos bandidos. Recebeu o apelido de One-Eyed Charley (Charley de Um Olho), por ter perdido parte da visão após um coice de um cavalo indomável e era profissional confiável que estava entre aqueles de melhor remuneração na região. 

Além da aparência e de atuar em uma ocupação masculina, seu comportamento não diferia dos demais homens que atuavam na dura vida das viagens de diligências, o que ajudou a afastar as suspeitas a seu respeito. Apesar disso, adotou o isolamento pessoal como estratégia de preservação, pois qualquer relacionamento íntimo ou de proximidade extrema representava um risco colossal de descoberta. A intimidade física, compartilhar uma casa, ou mesmo conversas profundas muito frequentes poderiam levar a um deslize ou a uma suspeita. Confirmando ou sustentando essa postura reclusa, não existem relatos históricos, cartas ou diários que mencionem um cônjuge, namorada ou namorado de Charley Parkhurst.

A adoção de identidade falsa pode ter lhe conferido um pioneirismo inusitado, pois consta seu registro eleitoral no distrito de Santa Cruz, Califórnia, para participar da eleição presidencial de 1868, quando mulheres não tinham direito de votar – conquista que só foi oficializada em 1920, através da 19ª Emenda. 

Parkhurst se aposentou em 1869, quando as ferrovias começaram a se transformar nas principais alternativas de transporte. Mudou-se para Watsonville, no Vale de Pajaro, e se estabeleceu em um pequeno rancho, onde lidava com atividades como a criação de gado e serviços de carpintaria. Sua vida fora das rotas de transporte foi marcada pela descrição e isolamento, além da fama de ser uma figura pouco simpática. Praticamente não saía de sua propriedade e tinha raros relacionamentos de amizade. Ficou doente, possivelmente de câncer de boca ou de língua (o que pode ter sido ocasionado por seu hábito de fumar maneira intensa no decorrer da vida), situação debilitante que causava dores severas, impedia a fala, atrapalhava a alimentação e agravou ainda mais sua reclusão. 

Charley Parkhurst estava só quando faleceu em 29 de dezembro de 1879, tendo por volta dos 67 anos. A causa oficial da morte foi listada como “reumatismo crônico”, um termo genérico para várias doenças dolorosas na época.]

Quando seu corpo estava sendo preparado para o sepultamento, finalmente foi descoberto aquilo que Charley guardou de maneira tão segura: tinha seios e genitália feminina, embora tenha vivido como homem durante toda a vida adulta. Jornais por toda a Califórnia, como o Santa Cruz Sentinel e o San Francisco Call, publicaram a história com manchetes sensacionalistas e o público teve um interesse muito grande por sua história. Repórteres correram para investigar sua vida e foi nesse momento que detalhes de seu passado foram revelados, além de especulações como uma suposta gravidez em seu passado. 

Apesar da revelação, o sepultamento ocorreu com seu nome e identidade masculina. Sua lápide no Cemitério Pioneer de Watsonville está inscrita com seu nome Charley Darkey Parkhurst. Sua vida e seu segredo são elementos de uma história sobre a luta pela liberdade e autonomia em uma sociedade altamente restritiva.


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