Diferentes sociedades cultivavam determinados medos e desejos que ajudaram a conceber no imaginário coletivo representações misteriosas de figuras femininas que expressam sedução e terror. As narrativas fantásticas e sobrenaturais podem refletir tabus ancestrais, fascinação pelo desconhecido, projeção da mentalidade masculina a respeito das mulheres, além de manifestações de medos reais.
Confira alguns exemplos de entidades femininas tão belas quanto aterradoras presentes em mitos, lendas tradicionais e até em lendas urbanas.
Qarinah
Uma antiga crença no mundo árabe pré-islâmico especulava sobre a existência de entes que acompanhavam as pessoas ao longo da vida. Eram espíritos conhecidos como Qareen (“Companheiro”) e Qarinah (“Companheira”), espécies de “gêmeas” ou “reflexos espirituais” das pessoas vivas. Geralmente havia harmonia entre os vivos e suas correspondências sobrenaturais, mas quando as relações não eram boas os resultados eram terríveis para quem vivia. A manifestação da Qarinah podia ser maligna, como um tipo de jinn (gênio) feminino, e atormentar homens ou mulheres. Quando ela assumia influência sobre alguém causava pesadelos, sussurrava sugestões prejudiciais, causava doenças, má sorte e agia como uma força perturbadora a respeito da conduta moral e sexual do desafortunado. Ela era sedutora e instigava a devassidão, a sexualização descontrolada, crises nos casamentos e expunha a pessoa a uma situação reprovável diante da comunidade. Ela era normalmente invisível, mas quando permitia ser vista em aparições noturnas ou através de sonhos assumia a forma de uma mulher bonita e encantadora. Para mudar o comportamento de uma Qarinah poderia ser necessário realizar rituais de exorcismo.
Súcubos
Durante a Idade Média foi difundida na Europa a crença na existência de demônios sexuais que promoviam a luxúria através dos sonhos femininos (os Íncubos) e masculinos (Súcubos). A palavra “súcubo” tem origem latina, podendo significar “amante” (procedente do termo “succuba”) ou “deitar-se embaixo” (de “succubare”), alusões que sugerem o caráter lascivo das Súcubos. Elas eram apresentadas como mulheres de extrema beleza, eventualmente com alguma característica demoníaca como chifres ou asa de morcego. Dotadas do incontrolável poder de sedução, elas dominavam suas vítimas através dos sonhos eróticos e drenavam a vitalidade dos homens drenando sêmen. Quando os encontros com elas eram frequentes, o sonhador infeliz seria condenado à deterioração da saúde, exaustão, enfraquecimento da fé, colapso mental ou até mesmo à morte. As entidades estavam associadas à misoginia medieval e ao temor à sexualidade feminina autônoma, além de representar medo do desejo reprimido e culpa religiosa.
Lilith
Popular figura mitológica de origens mesopotâmicas, representada como a demônia Lilitu, uma provocadora de doenças e outros males físicos e mentais que poderiam causar a morte. Foi incorporada à tradição judaica como Lilith e apresentada como a primeira esposa de Adão, criada simultaneamente com ele do mesmo barro (diferentemente de Eva, que foi criada de sua costela). Segundo esta crença, ela não aceitou se submeter a Adão, argumentando que eles eram iguais, então abandonou o Jardim do Éden. Fora do domínio divino, ela se corrompeu e se aliou ao Demônio, com quem teve vários filhos. Outras versões apresentam Lilith como uma entidade demoníaca hematófaga assassina de bebês e mulheres grávidas. A variada representação de Lilith também apresenta sua figura como uma espécie de Súcubo tentadora e poderosa ou figura mística da desordem. Sua imagem tem sido reavaliada sob novas perspectivas. Argumenta-se que ela virou alvo das associações negativas por causa de seu papel como um símbolo de independência.
Alvenhas
O folclore português concebeu mulheres misteriosas dotadas de beleza irresistível e que viviam no ambiente aquático. Elas eram as Alvenhas, figuras de natureza ambígua que podiam ajudar as pessoas, curar doenças ou proteger os animais, mas eram frequentemente tratadas como ardilosas, capazes de enfeitiçar e afogar os incautos. Populares na região da Terra Quente Transmontana, no nordeste de Portugal, elas podiam interagir com homens até mesmo através de relacionamentos amorosos e casamentos, mas quem se envolvia com elas não terminava bem. Elas não se apegavam ao mundo das pessoas e tendiam a voltar para as águas, assim seus amantes podiam definhar de saudades quando elas partiam ou morriam tragicamente por afogamento quando seguiam as amadas misteriosas até os seus domínios nos rios.
Ondina
Outra entidade ligada às águas, era uma espécie de ninfa sem alma humana imortal. Em sua representação uma Ondina tem a forma de uma mulher linda de comportamento peculiar, pois é misteriosa e melancólica; muitas vezes silenciosa ou de fala suave. Em sua busca pela humanização, ela pode ter um relacionamento proibido com um homem comum para tentar desenvolver uma alma. Ela acaba provocando uma paixão incontrolável porque sua beleza é irresistível e seu encantamento sobrenatural é poderoso. O problema é que quem se apaixona por ela não consegue sobreviver. Sendo uma entidade aquática, ela volta para seu ambiente e leva consigo o seu apaixonado, que não tem capacidade de viver sob as águas e morre afogado. Outra maneira de conhecer a fatalidade dessa relação é a perda da capacidade respiratória durante o sono, efeito que a Ondina provoca se for traída – “Maldição de Ondina”. Sua lenda inspirou obras de literatura, pinturas, música e até a ciência, pois a condição médica rara em que a pessoa perde a capacidade de controlar a respiração autonomamente é conhecida como “Síndrome de Ondina”, referência à maldição que ela é capaz de provocar.
Yuki-onna
No folclore japonês um yōkai é um ente sobrenatural que pode ser fantasmagórico, monstruoso ou ter outra natureza inexplicável. Entre tais criaturas estranhas existe a figura da Yuki-onna (“Mulher da Neve”), entidade ligada à neve. Costuma ser descrita como uma mulher bela e ao mesmo tempo sinistra, com uma palidez que não corresponde ao tom de uma pessoa viva, sendo até translúcida como se não tivesse um corpo sólido. Seus cabelos pretos contrastam com a palidez e seus lábios roxos cadavéricos sugerem que ela não é dotada de vida. Ela sequer deixa pegadas na neve, pois levita acima do chão congelado. Quem tem a infelicidade de se deparar com Yuki-onna se transforma em uma funesta estátua de gelo. A mulher sobre-humana pode atacar viajantes perdidos em plenas nevascas e congela suas vítimas com um toque, através de seu olhar ou de seu hálito gélido. Mesmo em suas casas, as pessoas podem estar sujeitas a uma visita desagradável da yōkai durante os invernos congelantes. Há histórias que registram comportamentos variados da entidade, destacando que ela pode seduzir homens e até se casa com alguns antes de praticar sua ação mortífera. O que justifica o comportamento da mulher do gelo? As crenças afirmam que ela foi uma mulher comum que morreu congelada em busca de abrigo e depois desse fim trágico virou um ser maldido em busca de vingança contra os vivos.
Fata Morgana
Esta figura que se popularizou na Itália foi inicialmente inspirada na feiticeira Morgan Le Fay, personagem das lendas arturianas. O nome “Fata Morgana” deriva do italiano e significa “Fada Morgana” e foi associada a uma mulher encantada que vivia num palácio de cristal submerso no Estreito de Messina. Ela tinha a capacidade de produzir uma magia ilusionista que confundia as pessoas, uma prática traiçoeira proposital para atrapalhar navegantes, para promover perigos e aumentar os riscos de desastres. Essa ação sobrenatural atribuída a ela decorria de um fenômeno óptico real verificado na região e em outras localidades. A ocorrência da refração da luz em camadas de ar com diferentes temperaturas em ambientes propícios pode provocar nos espectadores uma miragem. Os reflexos distorcidos eram interpretados como palácios, fortalezas e cidades imponentes no céu ou sobre o mar. Embarcações também eram vistas como se estivessem voando por causa do efeito. A falta de compreensão sobre esta ocorrência que leva uma camada de ar frio a ficar presa abaixo de uma camada de ar quente, funcionando como uma lente refratante que altera a trajetória da luz, levou os observadores do passado a interpretar tudo como produto de um poder mágico. A figura misteriosa e ambígua de Morgana passou a ser considerada em variadas regiões europeias como responsável pela incidência da ilusão e posteriormente seu nome serviu para identificar o fenômeno natural.
Leanan Sidhe
As lendas celtas irlandesas possuem um universo chamado Aos Sí, que é povoado por fadas e seres ligados à natureza. Entre tais entes está Leanan Sidhe, uma figura de formidável beleza, além de encantos igualmente inspiradores e perigosos. Ela motiva a criação e o talento de artistas variados, que sob sua influência são capazes de produzir obras magníficas. Se envolver com a linda musa do mundo das fadas tem seus prazeres e riscos porque ela submete e apaixona quem inspira a tal ponto que consegue drenar a vitalidade de seus amantes. É por causa dela que os artistas mais talentosos vivem momentos intensos de criação mas vivem pouco ou enlouquecem.
Alamoa
A lenda da Alamoa é um dos relatos mais fascinantes do folclore nordestino, especialmente ligado à Ilha de Fernando de Noronha. Segundo as versões populares, ela é descrita como uma mulher de beleza sobrenatural, vestida de branco, que aparece à noite nas redondezas do Morro do Pico. A aparição é irresistível para os homens, que seguem a figura misteriosa apenas para desaparecerem ou serem encontrados mortos em condições estranhas. Os relatos misturam erotismo e assombro, pois a Alamoa atrai com seu corpo sedutor e comportamento provocante, mas se revela como um espírito demoníaco ou vingativo. Há versões em que sua face se transforma numa caveira ou sua forma inteira se desfaz em chamas. A origem do mito é incerta, mas pode ter raízes coloniais, associando o sobrenatural à repressão sexual e ao controle social num ambiente penal, já que Fernando de Noronha foi presídio por muito tempo. Assim, a Alamoa seria tanto uma expressão do medo quanto do fascínio do proibido, condensando tensões culturais, religiosas e sociais em torno do feminino.










