Entre Deus e os reis: Bonifácio VIII e a supremacia papal

(Representação visual gerada por IA)

A disputa pelo poder entre a Igreja Católica e os reis era intensa durante os séculos XIII e XIV, situação que proporcionou uma série de conflitos. A instituição religiosa detinha uma estrutura riquíssima, controlando terras e arrecadando seus próprios tributos, recorrendo aos aspectos teológicos para legitimar seus interesses supranacionais. Os monarcas reagiram às pressões do papado e o embate entre poder espiritual e poder temporal chegou a uma fase crítica durante o pontificado de Bonifácio VIII.

Nascido Benedetto Caetani, em Anagni (Itália), por volta de 1235, era procedente de uma família influente que favoreceu sua ascensão na carreira eclesiástica. Ele realizou estudos em Bolonha e Paris, tornando-se notável conhecedor de Direito Canônico e Direito Civil. Ele ocupou cargos jurídicos na administração da Igreja antes de ser nomeado cardeal, conseguindo ter uma atuação destacada como negociador diplomático e articulador de assuntos internos. 

Em 1292, o cardeal Caetani participou da trama que resultou na renúncia de seu predecessor, o recluso monge Celestino V, que foi eleito após um conclave tumultuado que durou dois anos. Celestino não tinha grandes habilidades políticas e não conseguiu conduzir a Igreja num contexto tumultuado, então Caetani conseguiu convencer o pontífice a renunciar e tirou proveito dessa decisão. Depois de um tumultuado conclave com resultado contestado, ele saiu vitorioso e assumiu o pontificado sob o nome Bonifácio VIII.

O ambiente encontrado por Bonifácio era tenso, pois ele tinha muitos opositores no meio eclesiástico. A poderosa família Colona, que detinha significativa influência na estrutura da Igreja, se opôs imediatamente à sua condução ao posto maior do catolicismo. Os cardeais Jacopo e Pietro Colonna denunciaram publicamente o novo papa de ter manipulado a renúncia de Celestino V em seu próprio favor, acusando-o de usurpador. Como retrato das intrigas familiares envolvidas nos assuntos da instituição, eles ainda denunciaram a prática de nepotismo de Bonifácio, que teria distribuído terras da igreja para seus parentes. O autoritarismo e as perseguições também foram duramente reprovados. Em sua reação, o papa excomungou os adversários e deflagrou uma guerra contra os Colona, destruindo a fortaleza da família e confiscando suas propriedades. Derrotados, os inimigos fugiram para a França, onde encontraram apoio do rei Filipe IV, o Belo, outro inimigo poderoso do pontífice.  

As intrigas internas também envolviam a Ordem Franciscana. A ala conhecida como Os Espirituais, defensora da pobreza como via para a salvação, que reconhecia o antecessor como um homem santo que foi vítima de um golpe orquestrado por Bonifácio, identificado como um corrupto defensor do luxo e das vaidades mundanas. O papa também reagiu com a excomunhão desses críticos, mas o movimento que eles promoveram desafiou sua autoridade. 

Os reis da Inglaterra, Eduardo I, e da França, Filipe IV, também foram seus oponentes, pois resolveram cobrar impostos sobre o clero em atos que desafiaram o poder papal. A resposta de Bonifácio foi emitir a bula Clericis Laicos (1296), que proibia a tributação de impostos sobre o clero e bens da Igreja, além de impor a excomunhão do governante que desafiasse a determinação. O monarca francês não aceitou as condições e resolveu enfrentar o papa, obstruindo a saída de ouro e prata de seu reino com destino à sede católica em Roma. A pressão fez o pontífice recuar e modificar e abrir uma exceção para cobranças emergenciais. Outra medida para apaziguar a relação foi canonizar Luís IX, São Luís, avô do rei da França. O ato também teve finalidade teológica, reforçando a devoção através da veneração aos reis que promoveram governos cristãos.

Os desentendimentos entre os dois prosseguiram em 1301, quando Filipe ordenou a prisão do bispo Bernard Saisset sob acusação de traição, levando Bonifácio a questionar a legitimidade do monarca afirmando que cabia apenas à Igreja julgar e punir um de seus membros. O papa decretou a bula Ausculta Fili, que ratificou seu posicionamento de que os reis eram subordinados ao papa, mas o soberano francês decidiu contrariar mais uma ordem e queimou a bula papal em praça pública para declarar a soberania do reino. Diante de uma nova provocação contundente, Bonifácio editou a bula Unam Sanctam (1302), uma verdadeira declaração de guerra contra os reis. O documento radicalizou a posição de supremacia papal sobre os monarcas e condenou qualquer ato desafiador, pois considerou que a obediência ao líder da Igreja era indispensável para a salvação.

Filipe IV decidiu resolver a situação recorrendo a um método extremo: Depois de fazer acusações de sodomia e corrupção contra Bonifácio VIII, designou Guillaume de Nogaret, comandante da guarda real, para liderar tropas com o objetivo de cumprir a missão de ir até Roma para capturar o pontífice. O agente francês contou com o apoio de inimigos do papa, como o banqueiro Musciatto de Franzese e Sciarra Colonna, líder da familia rival. No início de setembro de 1303, o grupo cercou o palácio de Anagni, onde Bonifácio foi surpreendido e preso. O pontífice foi submetido a uma exposição vexatória nas ruas, sendo até mesmo espancado por Sciarra Colonna diante de testemunhas espantadas. A detenção ameaçadora durou três dias, e só teve fim porque a população ameaçou reagir em defesa do papa.

Bonifácio morreu aos 68 anos por causa de um derrame ou por infecção um mês após o incidente em Anagni. Fontes da época apontaram para outros danos desde a humilhação pública, como a sanidade mental perturbada e falas sem sentido. O papa que tentou governar a Europa como um rei acima dos demais morreu com sua reputação seriamente comprometida diante das derrotas políticas e denúncias de corrupção.

Ele foi sucedido pelo também italiano Niccolò Boccasini, sob o nome Bento XI, que tentou apaziguar os ânimos revertendo excomunhões declaradas e perdoando adversários de Bonifácio, embora tenha mantido as condenações religiosas dos agressores do antecessor. Bento XI morreu repentinamente depois de pouco tempo sob circunstâncias suspeitas, dando início a uma sequência conturbada de eventos envolvendo interesses políticos. O conclave durou onze meses sob pressão de Filipe IV, que conseguiu assegurar a eleição de seu aliado Bertrand de Got, arcebispo de Bordeaux, que assumiu o comando da Igreja em 1305 sob o nome de Clemente V e mais tarde adotou a cidade francesa de Avignon como sede do papado, iniciando um período conhecido como “Cativeiro de Avignon” (1309–1377). 

Durante o pontificado de Clemente V, Bonifácio VIII foi julgado postumamente como herege, mas não chegou a ser condenado formalmente.  Um dos mais célebres críticos de Bonifácio, Dante Alighieri, não poupou o sumo pontífice e, mesmo antes da morte de seu desafeto eclesiástico, o colocou imaginativamente no oitavo círculo do inferno em sua obra “A Divina Comédia”, num lugar reservado aos gananciosos negociantes de cargos eclesiásticos.


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