A “Tragédia de Tracunhaém”: Resistência indígena e discurso colonial

(Representação visual gerada por IA)

Os domínios de Portugal foram divididos em capitanias em 1534, mas poucas delas prosperaram, a exemplo de Pernambuco sob o governo de Duarte Coelho e de sua família. O sistema tinha fragilidades consideráveis porque os donatários precisavam arcar com os elevados custos do empreendimento, que exigia recrutamento de colonos, preparação de estruturas produtivas e defesa contra ameaças externas e contra as reações dos nativos. Os donatários exerciam poder de ampliar as áreas exploradas e subdividir os lotes de terras para atrair parceiros, o que inevitavelmente implicava a invasão dos domínios ancestrais dos nativos. Os líderes das capitanias podiam promover a “guerra justa”, instrumento legitimador utilizado pela Coroa para justificar a escravização e até a eliminação de indígenas que se tornavam obstáculos para o êxito do domínio territorial, apesar de certa resistência dos jesuítas que tinham o objetivo de converter os habitantes originários ao cristianismo. 

Além dessas dificuldades, a segurança das capitanias era ameaçada por piratas, corsários e traficantes de recursos naturais, além da oposição dos franceses, que não aceitavam passivamente a concessão dos imensos domínios coloniais do Novo Mundo aos espanhóis e portugueses através do Tratado de Tordesilhas. Os rivais dos portugueses chegaram a invadir a colônia e fixaram a França Antártica (no Rio de Janeiro, 1555-1567), mas o fracasso da investida não eliminou a disposição francesa. Clandestinamente, franceses aportaram nas capitanias mais vulneráveis para obter pau-brasil e o sucesso dessa atuação dependeu de uma estratégica aliança com indígenas. Os invasores adotaram uma postura relativamente mais moderada que os portugueses no trato com os nativos, favorecendo a formação de aliados entre os Tupinambás, Potiguaras e Caetés. A abordagem dos enviados da França ajudou a incentivar e organizar a hostilidade dos indígenas em relação à presença portuguesa, tornando o cenário ainda mais tenso. 

Diante desse quadro, a complicada administração dos interesses envolvidos no processo de exploração favoreceu a ocorrência de variados problemas e a adoção da violência desenfreada virou uma maneira de estabelecer o controle. O episódio da “Tragédia de Tracunhaém” foi um marco sangrento desse contexto. 

A Capitania de Itamaracá não conseguiu obter os mesmos resultados coloniais da vizinha Capitania de Pernambuco, apesar de também tentar implantar como base a produção de cana-de-açúcar. Limitada ao sul pela região de Igaraçu, em Pernambuco e ao norte pela região da Baía da Traição, na Capitania do Rio Grande, em Itamaracá progrediram com algum êxito os povoados da Ilha de Itamaracá e Goiana. A capitania foi inicialmente confiada ao donatário Pero Lopes de Sousa, que não chegou a realizar um trabalho efetivo de ocupação de seus domínios, e depois foi entregue ao administrador real João Gonçalves. Os problemas na ocupação portuguesa da capitania favoreceram a atuação dos franceses na região e a aliança entre os novos invasores e os nativos logo se transformou em uma preocupação para a segurança da próspera Capitania de Pernambuco. Uma resposta ao temor dessa situação foi a intensificação da escravização de nativos Potiguaras e Caetés, que já estavam sob pressão através da destruição de suas aldeias no processo de ocupação de terras para desmatamento e posterior implantação das lavouras canavieiras e engenhos. 

Indígenas reagiam de variadas maneiras, como através da realização de emboscadas e derrubadas de cercas, tentando realizar acordos para atenuar o avanço sobre suas terras e se aproximando dos franceses em busca de apoio e recursos, mas a disposição agressiva dos colonizadores era irredutível. Aldeias eram massacradas, plantações de mandioca eram saqueadas, sobreviventes capturados e escravizados. A escala de agressões também envolvia a prática violência sexual contra mulheres das aldeias e um ato forçado de dominação de uma jovem filha de um líder tribal pode ter sido o estopim da forte reação nativa que desencadeou a infame Tragédia de Tracunhaém.

Conta-se que, em 1574, um mestiço alegadamente associado ao Engenho Tracunhaém de Baixo, situado nas proximidades de Goiana, compareceu a uma aldeia potiguara disposto a se casar com uma filha do chefe Iniguassu, que concedeu a união com a condição de que o forasteiro aceitasse viver entre os familiares e gente da tribo da moça, que assim permaneceria em seu lugar de origem. Traindo a confiança de Iniguassu, o homem fugiu da aldeia levando a jovem e uma comitiva de guerreiros composta por outros filhos do cacique foi encarregada de resgatar a irmã. Os guerreiros constataram que a moça estava no engenho e que o proprietário do local não iria ceder. A situação teria mobilizado os nativos, que conseguiram reunir um substancial contingente de combatentes para promover uma represália e retomar a vítima do rapto. Num domingo, dia de descanso para os cristãos, os potiguaras recorreram a uma exitosa tática que iludiu os homens do engenho, que não conseguiram perceber o montante de oponentes que cercaram a propriedade. Os guerreiros conseguiram libertar os indígenas escravizados e resgataram a filha do cacique, mas este não foi o único efeito da ação. O engenho foi devastado e as construções foram incendiadas. Além disso, a família do senhor Diogo Dias foi assassinada e esse também teria sido o destino dos demais colonos agregados. A presença dos indígenas no engenho e arredores motivou sucessivas expedições que seguiram até 1584, quando a força colonizadora conseguiu enfim exterminar cerca de cinquenta aldeamentos potiguaras.

O episódio foi amplamente empregado como instrumento de propaganda contra os nativos, acusados de crueldade sanguinária pelos portugueses. A dita tragédia foi utilizada para exemplificar a barbárie dos indígenas, que precisavam ser “civilizados” pela força através do discurso da guerra justa como alegação moral e religiosa. O fundamento ideológico parcial da dominação colonial não reconhecia negativamente as práticas violentas contra os indígenas, enquanto encarava como abusiva e “selvagem” qualquer reação dos nativos, assim o evento fez parte da estratégia de fortalecimento da abordagem de controle territorial e defesa contra ameaças às custas da submissão dos povos da terra. A ótica colonial percebia a vitória dos indígenas em Tracunhaém como uma “tragédia” enquanto tratava a sequência da carnificina promovida pelos portugueses como um triunfo civilizatório.  

As fontes sobre o episódio foram produzidas pelos portugueses com informações acrescidas posteriormente aos fatos e o viés da versão pendeu em favor dos colonizadores. Elementos dessa narrativa podem ter sido criados para reforçar a posição contrária aos potiguaras. A motivação do ataque indígena pode ter sido fantasiada, apelando para o instinto de vingança pelo suposto rapto da moça, que pode figurar na condição de mito histórico desenvolvido a posteriori, como recurso para expressar a índole agressiva dos oponentes. Esse tipo de discurso também ajudava a encobrir fatores mais plausíveis como uma resposta extrema dos nativos diante de sistemático processo de escravização e destruição de seus espaços tradicionais.

Uma providência efetiva posterior ao êxito do ataque indígena foi buscar uma solução para a ocupação territorial que também iria proteger Pernambuco da movimentação de nativos eventualmente associados aos franceses, escancarando a fragilidade das condições de defesa e limitações dos recursos empreendidos no projeto colonizador. A fracassada Capitania de Itamaracá foi extinta e desmembrada, com parte de sua área sendo incorporada à Capitania de Pernambuco, incluindo a região de Tracunhaém e outras áreas próximas. Outra porção do desmembramento deu origem à Capitania da Paraíba, instituída em 1585. A nova capitania teve como sede a cidade fortificada de Filipeia de Nossa Senhora das Neves, atual João Pessoa. A providência representou uma tentativa de consolidar a presença portuguesa no litoral norte, protegendo Pernambuco e reafirmando os limites do domínio colonial diante da ameaça externa e à resistência indígena.


Referências: