Jack Sheppard: O criminoso que virou símbolo de resistência dos pobres

(Representação visual gerada pela IA Leonardo)

A Inglaterra do século XVIII vivia uma fase de extrema desigualdade social que era refletida nas condições de sobrevivência, moradia e segurança da população pobre de grandes centros como Londres, onde uma multidão vivia em situação de precariedade. Os índices de criminalidade eram elevados diante do cenário de desemprego elevado e miséria generalizada que dominava as áreas mais afetadas da cidade.

Redes criminosas se estabeleceram e criaram um poder paralelo nas ruas londrinas enquanto a resposta do Estado era recorrer ao “Código Sangrento” (Bloody Code), legislação do século anterior que listava uma grande variedade de crimes puníveis com pena de morte. O objetivo da lei era sobretudo assegurar a defesa patrimonial da elite e por isso eram impostas punições severas e desproporcionais para delitos como furtos de menor gravidade e dano, falsificação de documentos, caçar em terras alheias e outras práticas que envolviam principalmente a população pobre. As autoridades eram incapazes de lidar com a situação, pois não havia um corpo policial organizado, prevalecendo apenas guardas noturnos, muitas vezes praticantes de corrupção, além de tribunais frágeis e igualmente corrompidos. Uma alternativa para o governo foi a parceria com os “Thief-Takers” (“caçadores de ladrões”), grupos ambíguos que pairavam entre a vigilância policial e a prática de crimes como verdadeiras quadrilhas de delinquentes que agiam sob a proteção oficial. Estes vigilantes recebiam recompensas pelas detenções realizadas, o que motivava a realização de abusos como a implicação de inocentes, agressões e extorsão contra a população.

Era um contexto insalubre e extremo que acabava marginalizando muita gente, revelando figuras Jack Sheppard, um jovem que seguiu a trilha do crime e, apesar disso, acabou sendo admirado como herói pela população pobre. Sheppard nasceu em março de 1702 em Spitalfields, um distrito manufatureiro da cidade. Ele era de uma família de trabalhadores que viviam em condições precárias lutando pela subsistência. A situação que já era difícil se agravou após a morte do pai, quando a mãe assumiu sozinha a responsabilidade de cuidar dos filhos e se viu obrigada a deixar o menino numa instituição. Ele foi preparado como aprendiz de carpinteiro, mas descobriu logo que seria explorado quando passou a sofrer castigos físicos e a trabalhar sem receber salário.

Jack Sheppard desistiu da possibilidade de viver como um trabalhador precário e decidiu praticar crimes. Ele começou a realizar pequenos roubos e furtos, depois passou a invadir residências e lojas para obter pertences alheios. Em algumas investidas ele contava com a cumplicidade de comparsas, incluindo sua namorada Elizabeth “Edgeworth Bess” Lyon. Seu treinamento como carpinteiro ajudou a fazer dele um exímio arrombador, o que virou sua especialidade. Sua técnica de abrir fechaduras sem causar danos (lockpicking) deixava os investigadores confusos e ajudou a realizar furtos ousados e notórios, como o ataque vingativo em uma loja de um antigo patrão, deixando um enorme prejuízo em mercadorias extraviadas. Vários estabelecimentos foram alvos de sua ação e as perdas que ele causou se acumularam, justificando cada vez mais uma eventual condenação à morte conforme a lei em vigor.

Ele era um bandido procurado e seu rival, o bandido e líder de gangue Jonathan Wild, o “Rei dos Ladrões”, entrou na caçada para evitar concorrentes, fornecendo informações e recursos aos Thief-Takers para capturá-lo. A pressão deu certo e Sheppard chegou a ser preso, porém revelou mais um de seus talentos porque mostrou-se habilidoso na arte da fuga. Em 1724 ele foi detido e escapou da prisão quatro vezes. Na primeira fuga ele escapou da prisão de Bridewell serrando as barras da janela e descendo com uma corda feita de lençóis. Na segunda ocasião ele contou com a ajuda de sua namorada, que levou ferramentas escondidas em um bolo durante uma visita. Quando ele foi recapturado e já condenado à morte, conseguiu escapar da cadeia em Newgate novamente passando pela janela e escalando as paredes. Ele voltou a ser capturado e levado de volta à mesma instituição logo em seguida e deu outro jeito de sair de lá utilizando um prego para abrir a algema e depois descer da torre com uma corda.

Após a última fuga, o paradeiro de Sheppard foi denunciado por um antigo comparsa e ele voltou a parar em Newgate, só que agora com vigilância redobrada. Duas semanas depois ele foi enforcado, aos 22 anos, sob várias acusações criminosas e o ato de sua execução virou um espetáculo mórbido que parou a cidade e reuniu uma multidão de espectadores – estima-se que um terço da população de Londres acompanhou o enforcamento . A chegada do condenado ao cadafalso causou comoção, pois Sheppard conquistou a simpatia e apoio popular. Panfletos com sua história circulavam durante o evento público e ele compareceu ao seu último ato de vida elegantemente trajado e exibindo uma postura firme que ainda desafiava as autoridades.

A morte não encerrou a fama de Sheppard, que foi aclamado pelos habitantes das zonas pobres como um exemplo de resistência ao encarar a força do governo e as leis rigorosas. Seus roubos e furtos contra pessoas ricas foram abordados como atos de vingança sobre burgueses e proprietários exploradores, enquanto suas fugas eram tratadas como ações de coragem e astúcia. Ele foi transformado num símbolo contra a opressão, reverenciado por meio de panfletos (os “chapbooks”), encenações populares e em baladas que ressaltavam e fantasiavam suas façanhas. Escritores importantes como Daniel Defoe (famoso por obras como “Robinson Crusoé”), também destacaram o bandido admirado que agia sem praticar violência, alimentando ainda mais o mito em torno de seu nome.

O fato de um notório fora-da-lei se consagrar como uma figura admirada pelo povo, situação típica do fenômeno do banditismo social, é um sintoma que denuncia uma série de mazelas e o ânimo de insatisfação popular em relação ao governo, às instituições e às elites. Jack Sheppard escancarou o estado de injustiça que prevalecia na Inglaterra que enforcava ladrões de galinhas e poupava os corruptos poderosos e endinheirados.


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