“Tenho o direito de falar, e vou falar!” Esta afirmação contundente se tornou icônica como declaração de posicionamento da escritora inglesa Aphra Behn, que viveu no século XVII, época de grandes restrições para as mulheres. Aphra representa uma posição de pioneirismo na literatura e na cultura por diversos motivos, pois conseguiu viver profissionalmente de sua escrita, desenvolveu personagens feministas que refletiam suas ideias, explorou temáticas desafiadoras como sexualidade, contestou o colonialismo, o cenário político e apresentou inovações estilísticas em seu trabalho. Além disso, sua vida independente escandalizou os puristas de seu tempo.
As informações sobre as origens de Aphra são limitadas pela falta de registros. Sua data de nascimento exata não é conhecida, tendo sido por volta do ano 1640, assim como se tem certeza a respeito de qual foi sua cidade natal (podendo ter sido Canterbury ou Kent) e as fontes divergem ainda sobre outros dados biográficos como sua procedência familiar e social, pois há especulações de que era filha de um plebeu que exerceu a profissão de barbeiro ou de um “gentleman” oriundo da nobreza de menor posição. A própria Aphra forneceu informações imprecisas sobre seu passado, o que alimenta ainda mais o mistério a seu respeito.
Sua trajetória social foi bastante peculiar, pois durante a Segunda Guerra Anglo-Holandesa (1665–1667) ela atuou em espionagem a serviço do rei Carlos II. Identificada pelo codinome de “Astrea”, ela cumpriu missão na Antuérpia (atual Bélgica) vigiando exilados britânicos, porém o governo não pagou pelo trabalho que ela realizou e isso afetou seriamente sua subsistência ao ponto de fazer com que fosse presa por dívidas em 1668.
A crise acabou fazendo com que sua criatividade e inteligência se tornassem seus mais importantes recursos, então decidiu se dedicar profissionalmente à literatura, algo muito incomum para uma mulher. Aphra conseguiu publicar sua primeira obra – “The Forc’d Marriage” – em 1670, uma peça tragicômica sobre os arranjos de casamentos. Sua estreia mobilizou uma produção literária prolífica de peças, poesia, crônicas, romances e adaptações de obras de outros autores escritas originalmente em inglês e latim. Seus escritos próprios eram assinados pelo mesmo pseudônimo utilizado em seus tempos de espionagem e foram desenvolvidos considerando o que ela gostaria de expressar, mas sem descuidar do apelo voltado para o mercado editorial ou de recorrer aos aspetos mais ousados e polêmicos que chamavam a atenção. Suas peças fizeram sucesso no circuito teatral e renderam retorno financeiro, mas ela tinha outras estratégias para lucrar com a literatura e uma delas era dedicar elogiosamente algumas de suas obras à figuras proeminentes, pois isso gerava patrocínios e gratificações por parte das figuras homenageadas (incluindo o próprio rei que anteriormente a deixou em situação financeira delicada). Ela era uma promotora ativa de seu trabalho e negociava diretamente os contratos com os editores, assegurando controle sobre sua carreira, apesar da instabilidade e dos altos e baixos no fluxo de renda de alguém que vivia da escrita.
As temáticas de sua produção eram variadas e ousadas, explorando enredos que mexiam em questões sensíveis para a sociedade da época. Na peça “The Rover” (1677) ela tratou da liberação feminina através de personagens consideradas escandalosas porque tratavam de maneira natural sobre sexo e posicionamento ativo na sociedade. Em “The Widow Ranter” (1690) ela retratou uma revolução política liderada por uma mulher comum que questionava o domínio colonial. A sexualidade era um aspecto recorrente em seu trabalho, uma expressão de suas próprias ideias e experiências, descrevendo de maneira clara sentimentos como desejo, prazer e frustração sexual, além de questionar as expectativas impostas às mulheres e a moralidade que celebravam a vivacidade sexual dos homens enquanto punia as mulheres pela mesma experiência. Seu trabalho que abordava sexualidade foi recepcionado pela crítica como libertino e indecente, contudo suas motivações eram claramente transformadoras porque ela defendia a educação das mulheres, o direito ao divórcio e ao exercício da liberdade à expressão sexual, temas que seriam retomados apenas no século XIX por autoras feministas como Mary Wollstonecraft.
Além dessa abordagem avançada sobre os costumes e relação de gêneros, Aphra também se dedicou a questões sociais como a condenação aberta à escravidão e ao imperialismo britânico. No romance “Oroonoko” (1688), livro considerado como um dos primeiros romances em língua inglesa, era colocou um africano escravizado como protagonista da narrativa, explorando sua história como uma denúncia contundente. A obra era inovadora pela técnica que a autora apresentou de utilizar relatos reais misturado a eventos criados para a trama, uma abordagem de ficcionalização de fatos inspirados em eventos ocorridos no Suriname, lugar que ela alegou ter conhecido e onde testemunhou inomináveis práticas de abuso.
A vida pessoal e afetiva de Aphra foi enigmática. Antes de sua experiência como espiã, ela teria se casado quando tinha por volta dos 24 anos, em 1664, com um certo Johan Behn, negociante de procedência holandesa ou alemã, mas a união só durou até o ano seguinte porque ele morreu durante uma grave infestação que assolou Londres. Como tudo a respeito de sua existência além dos livros, até o matrimônio foi colocado em dúvida pela inexistência de comprovação e sabe-se que ela não voltou a se casar nem teve filhos, enquanto rumores apontam para uma agitada vida de relacionamentos breves com amantes que incluíam o controverso Johan Behn, um notório provocador libertino e ateu que gostava de escandalizar a sociedade londrina e era conhecido por ser sodomita. Aphra era acusada por seus críticos de viver como cortesã, amante de nobres e frequentadora de locais e eventos questionáveis, mas tais ataques podem ter sido produtos de pura difamação porque também não são apoiados em evidências. Ela deixou cartas íntimas e sentimentais sem identificação de destinatários, o que alimentou ainda mais especulações posteriores a seu respeito.
Apesar de sua produtiva atividade como escritora e de uma suposta vida agitada, no final de seus anos ela estava isolada e debilitada pela artrite reumatoide e por outras enfermidades que consumiram seu corpo, sua criatividade e seus recursos. Ela morreu na miséria em 16 de abril de 1689, por volta dos 49 anos. Seu nome e sua obra foram obscurecidos posteriormente e somente voltou a ser relembrada pela romancista Virginia Woolf, que a ressaltou como inspiração e como prisioneira em seu livro “Um Quarto Só Seu” (1929). Depois de ter sido sepultada praticamente como uma indigente, em 1970 os restos de Aphra Behn foram transferidos para a Abadia de Westminster, depositados na Poets’ Corner, ala dedicada aos literatos que mereceram uma honrosa homenagem póstuma e a Rainha Camilla, consorte do Reino Unido, inaugurou recentemente uma estátua celebrando o legado da escritora visionária.
Referências:
- Aphra Behn – English author
- Aphra Behn, the First Englishwoman to Earn a Living With Her Writing, Is Finally Getting Her Due
- The First English Woman to Make a Living as a Writer Was Also a Spy
- Aphra Behn: Poet, Playwright, Prisoner and Spy
- Aphra Behn
- Queen unveils Aphra Behn statue and celebrates literature and heritage in Canterbury

