Alexander Pearce, o Canibal da Tasmânia

(Representação visual gerada pela IA Leonardo)

Nas inóspitas e remotas selvas no leste da Tasmânia, na Austrália, as condições podem ser extremas por causa da densidade da vegetação, do terreno acidentado, de um clima desfavorável com chuvas frequentes e temperaturas que podem cair para abaixo de zero. No passado, sem meios para enfrentar as provações da natuzeza, as dificuldades eram ainda maiores, as pois condições de sobrevivência para algum aventureiro, para quem se perdesse ou até para quem escolhesse o ambiente como refúgio eram agravadas pela dificuldade de obter alimento além de frutas silvestres pouco nutritivas, raízes e insetos, fontes insuficientes para o sustento físico de alguém. A caça era de extrema dificuldade, pois animais como cangurus, vombates e demônios-da-tasmânia não eram presas acessíveis para quem não possuísse habilidades e treinamento aprofundados, situação que tornava ainda mais complicada e desafiadora a sobrevivência de quem se enfiasse naquele ambiente natural hostil para um invasor humano. Uma das experiências mais dramáticas e terríveis neste selvagem chocou a sociedade australiana do século XIX ao envolver fuga de prisioneiros e a estarrecedora prática de canibalismo, revelando um dos criminosos mais infames da Austrália, o ladrão e assassino Alexander Pearce.

Pearce era irlandês procedente da cidade de County Monaghan, onde nasceu volta de 1790. Seu país natal vivia sob pressão do controle britânico num contexto que contava ainda com opressão religiosa e social contra os católicos, marginalizado por imposição legal. As circunstâncias agravaram um estado de precariedade que levou muitos católicos aos crimes como meio de subsistência e retaliação, incluindo o jovem Alexander, que começou a roubar para obter dinheiro. Ele praticou pequenos roubos e furtos até ser preso em 1819, obtendo uma condenação para cumprir 7 anos de prisão pelo roubo de sapatos, contudo, a detenção era muito distante da Irlanda e seu destino foi a colônia penal de Nova Gales do Sul, na Austrália. Os ingleses passaram a utilizar a longínqua terra australiana como destino de condenados após a independência de suas posses americanas, solução de afastava de vez os delinquentes e criminosos da Europa, enviando os indesejáveis para os confins coloniais.

O condenado foi transferido de Nova Gales do Sul para a prisão Macquarie Harbour, na região de Van Diemen’s Land (atual Tasmânia), local destinado aos priores prisioneiros e onde as condições do confinamento eram brutais. A mudança não controlou o comportamento de Pearce, que continuou indisciplinado e praticou novos delitos mesmo na cadeia. Macquarie Harbour estava localizada na Ilha Sarah, local propositalmente escolhido por ser distante, de difícil acesso por causa das traiçoeiras condições das águas ao redor da ilha e por conter um meio ambiente que representava perigos tão graves quanto a própria prisão, tornando a fuga de prisioneiros uma operação considerada praticamente impossível. Os presos eram submetidos a castigos físicos e psicológicos nas celas solitárias, precariedade alimentar e sanitária, além do cumprimento de trabalhos forçados na extração de madeira. Os guardas eram frequentemente descritos como indivíduos violentos, praticantes de torturas e agressões sexuais, quadro que prejudicava ainda mais as condições dos detentos, pois muitos sucumbiam a transtornos mentais e recorriam ao suicídio.

Pearce e outros prisioneiros decidiram que não iriam mais suportar a situação da cadeia e resolveram arriscar uma fuga ousada. Eles traçaram planos de escapar através da selva durante uma jornada de trabalho fora dos muros de Macquarie Harbour e, em abril de 1822, conseguiram se embrenhar pelo matagal que se transformou num obstáculo para que os agentes prisionais conseguissem realizar uma perseguição eficiente. O grupo de 8 fugitivos se perdeu e logo conheceram as ameaças que a natureza da ilha reservava. Com o passar do tempo e diante da falta de recursos, eles recorreram a comer folhas, cascas de árvores e insetos, mas não foram capazes de garantir o sustento físico consumindo tais fontes alimentares. O estado de penúria lançou os homens em uma luta sem limites pela sobrevivência, então resolveram apelar para o extremo do canibalismo. O fugitivo Alexander Dalton foi o primeiro a servir de fonte de alimentação para os companheiros, sendo assassinado enquanto dormia. Seu corpo esquartejado foi assado em seguida. O líder do bando, o ex-soldado Robert Greenhill, portava um machado e decidia o destino dos demais e determinou que Thomas Bodenham e William Kennerly deveriam ser eliminados e depois comidos porque não eram suficientemente fortes para concluir a fuga. Semanas depois, quando restavam apenas Pearce, Greenhill e John Mather, o matador que determinada quem vivia e morria resolveu eliminar mais um de seus companheiros, mas Pearce decidiu reagir e conseguiu matar Greenhill. Os últimos foragidos tentaram levar a jornada adiante até a morte de Mather, que, segundo Pearce, não resistiu ao esgotamento físico e doenças contraídas ou agravadas durante a desventura selvagem. Alexander Pearce chegou a comer partes do cadáver do companheiro antes de acabar capturado nas proximidades de um assentamento.

O único sobrevivente da expedição malsucedida relatou sobre a experiência em seus depoimentos, mas as autoridades acharam inverossímil porque sua narrativa parecia ser extremamente absurda. Pearce foi reenviado para Macquarie Harbour, mas ele não desistiu de escapar do cativeiro. Ele conheceu o detento recém-chegado Thomas Cox e conseguiu convenceu o novato a realizar uma fuga em novembro de 1823, mas seu cúmplice logo demonstrou insegurança e demonstrou não ser confiável ao ameaçar voltar para a prisão e denunciar Pearce em troca de favorecimento. Diante do conflito entre os fugitivos, o inexperiente Cox levou a pior, sendo assassinado e tendo seu corpo esquartejado utilizado como fonte de alimento para o canibal reincidente durante alguns dias. Quando Pearce foi novamente capturado, desta vez não precisou convencer sobre a prática de canibalismo, pois ao ser abordado ele ainda mantinha consigo pedaços do corpo do comparsa guardados em um saco e imediatamente justificou: “Comi suas coxas e braços, pois a fome é pior que o medo do inferno.”

Durante os novos depoimentos, Pearce novamente detalhou friamente os fatos e não exibiu qualquer remorso, embora tenha confessado que a carne humana era desagradável e que sua motivação para o canibalismo foi a necessidade de sobrevivência. Ele ficou detido e foi julgado em Hobart, capital de Van Diemen’s Land, sendo condenado à morte por enforcamento e executado em julho de 1824.

A história perturbadora do canibal escandalizou a colônia, afinal, comer carne humana era um tabu grave, prática que na época era associada aos grupos “selvagens” e “incivilizados” de regiões africanas e entre diversos grupos indígenas. Outra consequência do caso foi a repercussão controversa diante do sistema penal, pois Pearce foi explorado na defesa da severidade da prisão e como exemplo de alegadas consequências morais das fugas, mas também foi abordado por quem criticava a abordagem da imposição do tratamento agressivo dado aos condenados na prisão Macquarie Harbour, que acabou sendo definitivamente fechada em 1833. Toda essa história serviu ainda de fundo para debates psicológicos e filosóficos sobre a natureza humana e a influência das condições extremas sobre as reações das pessoas.


Referências: