João de Deus, Lucas Dantas, Luís Gonzaga e Manuel Faustino: Mártires da idependência e da abolição das escravidão

A Conjuração Baiana, ocorrida em 1798, foi um dos mais importantes movimentos de contestação ao domínio português sobre o Brasil e o contexto da Bahia favoreceu bastante a ocorrência da grande revolta. A capitania enfrentava uma grave crise desde a transferência da capital da colônia de Salvador para o Rio de Janeiro, fato que reduziu as atividades econômicas na região numa fase que coincidiu com a redução da produção do açúcar e crescimento do custo de vida local. A pobreza era crescente e as desigualdades sociais gritantes, fator que gerava tensão numa época de circulação das ideias incendiárias do Iluminismo, que denunciava as condições de vida e clamava por uma sociedade melhor. Exemplos de transformações eram inspirados através das discussões sobre a Independência dos Estados Unidos (1776), a Revolução Francesa (1789) e a Revolução Haitiana (1791). 

Pessoas motivadas a agir para mudar a situação começaram a se mobilizar através de reuniões onde discutiam a respeito de ideias e planos de ação para instituir um novo governo e a divulgação dos saldos destes debates começou a ocorrer através da circulação de panfletos que convocavam a população para agir. A maçonaria, através dos Cavaleiros da Luz, grupo composto por intelectuais e pessoas de posições liberais, ajudou a incrementar a base ideológica do movimento, mas existiam consideráveis divergências entre os participantes. A elite intelectual rebelde desejava promover a independência da Bahia, mas mantendo estruturas que existiam na colônia, sobretudo a escravidão, pois transformações radicais afetariam suas condições privilegiadas. Enquanto isso, as camadas populares envolvidas na mobilização pretendiam ir além das mudanças de status político, pois seus objetivos envolviam promover uma transformação social profunda, incluindo a abolição dos escravos e a consolidação de uma sociedade igualitária. Entre os agentes populares do movimento estavam artesãos, soldados de baixa patente, alfaiates e outros trabalhadores urbanos, muitos deles negros e mestiços. 

O material divulgado pelos rebeldes era sugestivo de seus planos de tomada de poder e as autoridades passaram a averiguar a procedência dos textos e identificar quem estava por trás daquela articulação. Era fundamental para o governo colonial inibir a manifestação e impedir que a instigação ativista se transformasse em um ativo processo de enfrentamento. O objetivo governamental foi cumprido e lideranças radicais foram descobertas e imediatamente julgadas, mas somente integrantes do segmento popular foram punidos: João de Deus do Nascimento, Lucas Dantas de Amorim Torres, Luís Gonzaga das Virgens e Manuel Faustino dos Santos Lira.

(Representação visual gerada pela IA Midjourney)

João de Deus era um alfaiate nascido em 1771 na Vila de Cachoeira, na Capitania da Bahia. Ele era filho de um homem branco com uma mestiça forra e se estabeleceu em Salvador para trabalhar com alfaiataria. Ele era um trabalhador sensível à situação social e a miséria que ele testemunhava motivou sua disposição para participar de uma iniciativa que enfrentasse as condições. Com esta determinação, ele se envolveu em reuniões secretas que tratavam dos ideais iluministas e logo se identificou com as causas, virando um participante ativo do movimento que se formou em torno da proclamação de uma república fundada em princípios de liberdade e igualdade. Ele foi detido em agosto de 1798, acusado de conspiração contra a Coroa Portuguesa, e acabou confessando seu envolvimento na elaboração dos panfletos participação nas discussões sobre a tomada de poder por meio de um motim. João de Deus passou um ano preso até ser enforcado, em 8 de novembro de 1799, em um local de nome significativo na cidade de Salvador: Praça da Piedade. Seu corpo foi posteriormente esquartejado e exposto ao público como exemplo sangrento das consequências de ser um rebelde. Ele tinha 28 anos e deixou esposa cinco crianças.

(Representação visual gerada pela IA Midjourney)

Lucas Dantas nasceu em 1774 em Salvador. Ele exerceu o ofício de marceneiro para sustentar até conseguir ingressar no exército, servindo no regimento de artilharia. Ele foi apontado como uma das principais lideranças do movimento rebelde, o que era um delito grave para um militar. Foi preso em setembro de 1798 quando estava foragido no interior e acabou sendo ferido depois de lutar para não ser capturado. Também teve como destino a morte na forca seguida de esquartejamento e exibição de seus restos mortais. Ele tinha 25 anos quando foi executado. 

(Representação visual gerada pela IA Midjourney)

Luís Gonzaga nasceu em 1762 era filho de trabalhadores livres e pobres e chegou a aprender o ofício de seu pai, um alfaiate, mas entrou para a força pública militar e serviu na Companhia de Granadeiros do 1º Regimento. Ele não era um soldado disciplinado e chegou a desertar. Numa de suas fugas, conheceu o português Manoel João da Silva, um homem versado que o ensinou latim, técnicas cirúrgicas e apresentou ideias revolucionárias vindas da Europa. Ao ser capturado, em 1792, foi condenado por seu delito militar a cumprir pena de serviços forçados, porém foi perdoado pelo governador e voltou a fazer parte da corporação, mas sua rebeldia não foi contida. Revoltado por causa do tratamento desigual que recebia por ser mestiço, acabou tendo motivações ainda mais firmes para se aproximar da trama conspiratória de proclamação de um governo baseado na igualdade. Ele também foi identificado como autor dos panfletos que difundiam ideias transgressoras e sua reputação só agravou os indícios de seu envolvimento. Também foi executado na forca e esquartejado aos 37 anos.

(Representação visual gerada pela IA Midjourney)

O quarto implicado foi Manuel Faustino, o mais jovem dos condenados pela participação na Conjuração Baiana. Nascido em Santo Amaro, Bahia, em 1775, era filho de uma ex-escrava e seu pai era desconhecido. Ele aprendeu o ofício da alfaiataria e começou a trabalhar para obter sustento. Por intermédio de colegas de profissão, conheceu o movimento que discutia a formação de uma nova sociedade livre do domínio colonial e da escravidão. Ele foi apontado como suspeito de participação no movimento que pretendia instaurar uma república na Bahia e tentou abrigo com o padre Antônio Francisco de Pinho, que aconselhou o alfaiate a se entregar e confessar seu crime. Manuel Faustino delatou outros participantes, mas tendo o mesmo fim dos demais e morreu no mesmo dia dos companheiros João de Deus, Lucas Dantas e Luís Gonzaga. Ele tinha 24 anos na ocasião de sua morte.

Os quatro condenados pela participação na Conjuração Baiana foram reconhecidos como mártires da causa emancipatória brasileira e contra a escravidão. Desde 2011 seus nomes fazem parte do Livro dos Heróis da Pátria. Um reconhecimento tardio, mas necessário.