A intolerância religiosa e os abusos praticados pelas autoridades eclesiásticas e civis com base na justificativa de defesa da fé foram altamente criticados durante os tempos do Iluminismo, no século XVIII. A associação entre Estado e Igreja era um fator que impedia o progresso humano para pensadores como Voltaire, Montesquieu, Diderot e Jean Meslier, que resumiu a crítica na contundente afirmação de que “o homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”. Não faltavam casos exemplificativos da ação arbitrária do fanatismo religioso como instrumento de dominação e um em particular mereceu um destaque especial entre os críticos sociais.
O caso envolveu François-Jean Lefebvre de la Barre, acusado e condenado por blasfêmia. Nascido no meio aristocrático em 1745, ficou órfão cedo e herdou a fortuna da família, o que proporcionou uma vida confortável e independente da autoridade parental. Seu estilo de vida poderia ser qualificado como libertino, sendo adepto de bebedeiras, frequentador de festas e ambientes luxuriosos. Apesar do cotidiano desregrado e moralmente censurado por causa de seu comportamento social, ele adquiriu em suas convivências e experiências uma série de referências filosóficas avançadas, lendo discutindo as obras iluministas.
Num meio altamente coservador, La Barre era visto com maus olhos, de conduta sempre considerada suspeita, então, para sua infelicidade, um incidente na cidade de Abbeville, no norte da França, precipitou a desgraça que acabou determinando seu destino. Em agosto de 1775, um crucifixo de madeira posicionado em uma ponte que era um marco da cidade apareceu danificado com sérios indícios de que foi alvo de um ato de vandalismo. O estrago ao símbolo religioso foi considerado mais do que um atentado contra o patrimônio da cidade, pois a comunidade enfurecida qualificou o episódio como um ato de grave ofensa à própria fé, um sacrilégio indesculpável. As autoridades de Abbeville se mobilizaram para encontrar quem realizou o ataque e La Barre foi considerado um suspeito, juntamente com outros jovens desordeiros ou de má reputação.
Os indícios de culpa considerados pelos acusadores envolviam um episódio prévio altamente reprovado, quando La Barre não tirou o chapéu diante da passagem de uma procissão, o que foi considerado grave sinal de desrespeito. Além disso, os elementos comprobatórios mais comprometedores foram identificados quando foi realizada uma inspeção dos investigadores em sua residência, pois encontraram por lá vários livros censurados, com destaque para “Dicionário Filosófico”, Voltaire, obra infame por causa de suas críticas à religião.
Com base nestas evidências frágeis, além de testemunhos imprecisos e ressentidos, o jovem foi levado ao tribunal sob a acusação de blasfêmia. Um juiz local altamente sensível aos preceitos fundamentalistas não teve a mínima compaixão cristã e condenou La Barre a uma sentença extrema e brutal: ter a língua arrancada, depois ser decapitado com uma espada e, enfim, ter seu corpo jogado em uma fogueira. A apelação da defesa foi inútil, pois a instância superior confirmou a pela radical e desproporcional.
La Barre foi executado em 1 de julho de 1766, aos 21 anos de idade. O livro de Voltaire foi jogado na fogueira que incinerou o condenado. Seus bens foram confiscados pelo Estado.
Após o desfecho extremo desse caso, La Barre foi ressaltado como uma vítima da injustiça e da intolerância fundamentalista. O próprio Voltaire mencionou variadas vezes o caso para reafirmar suas críticas à Igreja e sua associação ao Estado, pregando a separação institucional que virou uma causa perseguida pela Revolução Francesa. O filósofo destacou que La Barre não foi condenado pela prática de nenhum crime real, mas pelo exercício de pensar livremente e possuir livros proibidos por causa das ideias que continham. Voltaire qualificou La Barre como um heroi e chegou a abrigar um de seus amigos, foragido da autoridade por causa do incidente do crucifixo. Ativistas também evocaram o julgamento como um exemplo grotesco de abuso derivado das condições do Antigo Regime. O julgamento foi simbolicamente anulado durante a Revolução Francesa.
Desde 1905, uma estátua em sua homenagem está erguida em Montmartre, Paris, como uma referência para os defensores do laicismo e da liberdade de expressão.
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