Christine de Pizan: Uma inovadora medieval na literatura e na valorização feminina

(Representação visual gerada pela IA Leonardo)

As perspectivas para uma mulher na Idade Média eram limitadas em diversos aspectos. Uma das restrições era o insuficiente acesso à instrução formal, privilégio que atendia prioritariamente aos homens das camadas sociais mais elevadas. Casamento, maternidade e rotinas domésticas eram as principais atividades femininas, desenvolvidas sob a dependência de homens. Por causa dessa situação, algumas mulheres tiveram um destaque especial quando desafiaram os papeis habitualmente definidos e demonstraram ousadia e capacidade quando o contexto era arduamente desfavorável. A escritora Christine de Pizan foi uma dessas figuras que romperam os limites.

Nascida em Veneza, Itália, em 1364, Christine de Pizan era filha de Tommaso di Benvenuto da Pizzano, um respeitado polímata que conquistou a admiração da nobreza e foi parar na corte do rei Carlos V da França. Polímatas eram pessoas versadas em diversos saberes avançados e Tomasso tinha uma reputação notável por sua atuação como médico e astrólogo, assim Christine foi logo habituada ao universo dos estudos ao acompanhar e aprender com o pai, estando sempre rodeada de livros e fontes de conhecimentos. Ela teve acesso a informações que eram omitidas das mulheres e teve uma experiência de aprendizado que ia muito além da média da própria população masculina. Ela desenvolveu uma aptidão particularmente especial para a literatura, o que foi aprofundado pelo prazer e voracidade como leitora. 

Ela se casou cedo, aos 15 anos, com um alto funcionário real chamado Étienne du Castel e eles tiveram um relacionamento feliz, que resultou no nascimento de três filhos. A posição da família na corte favoreceu a convivência com os eruditos que também frequentavam os ambientes da nobreza e Christine tirou um ótimo proveito dessas interações, participando de eventos literários formando vínculos produtivos com literatos e outros admiradores das artes. 

Apesar desta fase de grande enriquecimento intelectual e conforto em um meio privilegiado, as perdas e sofrimentos acabaram afetando sua vida. Em 1386 ela perdeu seu pai e, três anos depois, seu marido sucumbiu por causa da peste. Christine ficou emocional e materialmente desamparada, tendo que criar seus filhos e uma sobrinha que era dependente dela, precisando lidar com condições desfavoráveis a partir de então. Sem um provedor masculino, ela assumiu a responsabilidade de obter o sustento da família enquanto tentava assegurar o recebimento de pagamentos devidos ao seu marido através de reivindicações judiciais e trâmites na corte. 

Enquanto os processos se desenvolviam, uma alternativa que ela encontrou foi exatamente explorar seu talento literário, atuando como uma escritora profissional, algo praticamente inconcebível para uma mulher e seu ímpeto lhe valeu a condição de primeira mulher europeia a exercer a escrita como profissão. Inicialmente, seus textos eram poemas amorosos que eram bastante populares na época e a divulgação desse trabalho acabou despertando o interesse de nobres dispostos a bancar a produção e, consequentemente, prover o sustento da autora, que pode se dedicar exclusivamente à produção literária.

Com disposição, talento e erudição, Christine seguiu escrevendo várias obras, que abrangiam poesia, biografias (destacando um livro enaltecendo Carlos V), conselhos práticos, além de tratados políticos, filosóficos e sobre outros temas sociais sensíveis como a condição da mulher em seu tempo. Ela também produziu debates literários nos quais discutia sobre obras de outros autores, como Jean de Meun, autor de “Romance da Rosa”, que ela criticou por causa de sua visão pejorativa sobre as mulheres em sua resposta intitulada “Querelle du Roman de la Rose” (1402).  Este posicionamento foi aprofundado na obra “O Livro da Cidade das Damas” (1405), uma “utopia” feminina que se passa numa próspera cidade habitada e governada por mulheres, ressaltando seu modelo de sociedade como uma contestação à tradicional perspectiva que valorizava apenas os homens como capazes de promover prosperidade e que também se manifestava na literatura da época. 

A temática voltada para a valorização das mulheres posiciona Christine de Pizan como uma precursora feminista, trazendo a defesa da posição de que a natureza não proporcionou a superioridade masculina e que as diferenças tinham causas sociais como a negação ao acesso à educação e retrições para a participação ativa em atividades relevantes tidas como masculinas. Sua produção foi atacada por críticos por causa do conteúdo e por ter sido concebida por uma mulher e seu nome foi forçadamente obscurecido ao longo do tempo.  

O último registro escrito por ela foi a “Le Ditié de Jehanne d’Arc”, trabalho homenageando Joana D’Arc, destacada como uma mulher virtuosa e heroína dos franceses. Depois dessa obra, a autora adotou uma vida reclusa, sem mais registros a respeito de sua vida. Estima-se que a inovadora escritora morreu por volta de 1430.


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