As histórias e experiências associadas à escravidão possuem uma grande variedade de aspectos dramáticos e extremos, envolvendo sofrimentos, lutas e desfechos surpreendentes. A escrava Marie-Joseph Angélique, que viveu no século XVIII, protagoniza uma dessas histórias complexas.
Nascida escrava em Portugal por volta de 1705, Angélique teve passagem por diversos destinos quando estava submetida à exploração escravista e em 1725 foi parar na colônia da Nova França, no atual Canadá, para onde foi levada pelo comerciante François Poulin de Francheville, estabelecido em Montreal. Ela serviu como empregada doméstica na residência de Francheville sob a rigorosa e brutal supervisão de sua esposa, Thérèse de Couagne, que herdou a propriedade da cativa quando o marido morreu em 1733.
Angélique implorou para ser libertada várias vezes e chegou a tentar fugir do domínio de sua senhora, mas foi frustrada pelas recusas e pelas punições. Apesar de sua situação de vida, ela se envolveu romanticamente com Claude Thibault, um francês branco que chegou à colônia como servo contratado. Um relacionamento inter-racial naquela época e contexto era renegado socialmente e a senhora Thérèse de Couagne não admitiu a continuidade do envolvimento, mas os amantes ainda conseguiam se encontrar ao despistar o controle e a vigilância.
A situação complicou quando a senhora resolveu vender Angélique, que seria enviada para longe de Montreal. O desespero diante da possibilidade da separação motivou o casal a improvisar um plano de fuga em janeiro de 1734, mas eles foram flagrados enquanto tentavam embarcar para Europa. Thibault ficou provisoriamente detido e Angélique foi devolvida para a patroa, mas o caso não foi esquecido.
Dois dias após a liberação de Thibault da cadeia local, um incêndio grande e devastador atingiu a residência de Thérèse de Couagne e vários imóveis nos arredores. O casal fugitivo foi logo associado ao incidente, mas o servo não foi localizado e Angélique foi detida como suspeita, iniciando um processo judicial controverso no qual ela respondeu sozinha por acusações graves. Testemunhas alegaram que a acusada foi vista estranhamente agitada enquanto as chamas destruíam parte da cidade, reforçando a ideia de que ela provocou o estrago. As pessoas que acusaram não viram o incêndio ser provocado, mas alegaram que Angélique ameaçou queimar a casa de sua dona, deixando a escrava em uma situação muito delicada.
Rumores sobre o comportamento e a moralidade da acusada pesaram contra ela, além dos aspectos do contexto de preconceito racial que pesava contra uma mulher negra escravizada. Apesar da falta de provas concretas e sob a pressão furiosa de pessoas que exigiam uma punição, as autoridades resolveram fazer de Angélique confessar a prática do atentado através da aplicação de tortura física, um meio problemático para se obter esclarecimentos a respeito dos fatos.
A confissão foi suficiente para impor a condenação à morte, inicialmente prevendo que ele teria as mãos cortadas antes de ser queimada vida, mas o método de execução acabou sendo substituído pelo enforcamento após uma apelação da defesa. Marie-Joseph Angélique foi enforcada publicamente diante do cenário dos estragos e não foi sepultada depois, pois seu corpo foi queimado e as cinzas espalhadas nos escombros.
O caso desperta questões importantes. Ela foi vítima das circunstâncias e culpada sem provas por um desastre por causa de sua condição vulnerável? Angélique praticou um ato radical de resistência contra sua submissão à escravidão?
Referências:


[…] Marie-Joseph Angélique e as chamas da escravidão […]