Hans Staden, o alemão que quase foi comido por canibais no Brasil e escreveu um dos primeiros “best sellers” da Europa

(Representação visual gerada pela IA Leonardo)

O início dos contatos dos europeus com as misteriosas terras da América atraiu logo aventureiros interessados na experiência e na possibilidade de ganhos. Entre vários indivíduos que se lançaram no desafio de explorar o desconhecido através dos mares e das selvas estava o alemão Hans Staden. Nascido na cidade de Homberg em 1525, Staden era explorador e mercenário, mas tinha também interesse em lucrar com o comércio e descobriu nas expedições destinadas ao Brasil uma interessante oportunidade. Assim, em 1548, foi para Portugal se engajar em uma expedição despachada para fazer frente às constantes investidas dos franceses que desprezavam os limites do Tratado de Tordesilhas, além de transportar colonos e depois voltar com carregamento de pau brasil. Chegou em Pernambuco, na capitania de Duarte Coelho, onde era necessário o apoio de reforços para conter as reações dos indígenas e o alemão tomou parte da ação como combatente, sendo recompensado pelo serviço. Depois foi lutar outra vez, dessa vez contra os franceses, mas sem o mesmo sucesso. Acabou voltando para a Europa depois disso, mas com o objetivo de repetir a tentativa de se dar bem no continente selvagem.

No ano seguinte, Hans Staden já estava em outra expedição, mas dessa vez sob bandeira espanhola, embarcando em Sevilha numa viagem planejada para chegar ao Rio da Prata. Já perto da costa brasileira, a frota de três navios encarou as dificuldades de um temporal e uma sequência de incidentes que resultaram na perda de todas as embarcações, obrigando a tripulação sobrevivente a se instalar em terra em São Vicente. Staden conseguiu emprego como artilheiro no forte São Filipe da Bertioga, onde ficou de serviço por mais dois anos.

Durante um serviço de captura de escravos fugidos, o próprio alemão acabou sendo capturado por tupinambás. De notória fama de praticantes de antropofagia, os tupinambás que capturaram Staden conduziram o prisioneiro para a aldeia e mantiveram o europeu entre eles durante nove meses. Ao longo do duro período aprisionado, Staden observou atentamente os costumes dos indígenas e teve até a experiência de encarar uma tentativa de invasão da aldeia pelos tupiniquins, aliados dos portugueses, sendo forçado a defender a aldeia de seus captores. Sua condição de prisioneiro só mudou depois que corsários franceses que costumavam contar com os tupinambás como aliados contra os portugueses intercederam a seu favor e negociaram sua libertação.

Sob o domínio dos nativos, ele observou muitos de seus hábitos e costumes. A organização social dos indígenas chamou sua atenção, pois ele considerou que a sociedade não possuía um governo formal, tal qual compreendido pelos ocidentais europeus, prevalecendo um respeito aos mais velhos como líderes e sem uma hierarquia administrativa ou política definida. Ele não compreendeu bem a religião de seus captores, que cultuavam ícones e celebravam através de festividades e rituais dirigidos pelos pajés. 

O canibalismo foi, por razões óbvias, o aspecto que mais lhe chamou a atenção. Ele descreveu como os prisioneiros eram relativamente bem tratados até a chegada do dia fatídico da execução, quando recebiam uma pintura corporal especial, eram amarrados pela cintura com uma muçurana, uma resistente corda artesanal, e ficavam posicionados aguardando um forte e fatal golpe de uma ibirapema, tacape utilizado pelo executor. Toda a preparação ocorria em meio a uma celebração regada a uma bebida fermentada feita de mandioca e quando o infeliz prisioneiro morria seu corpo esquartejado era cozido e servido num banquete que não servia para matar a fome de ninguém, mas era parte de um ritual para absorção da força de quem se serviam. A expectativa de passar por aquilo era terrível e o medo foi um sentimento presente, fazendo o europeu confessar: “Durante os nove meses passados em meio aos selvagens hostis, tive de levar em conta, dia após dia, hora após hora, que a qualquer momento poderia ser impiedosamente morto e devorado”. 

De volta à sua terra natal, Hans Staden resolveu relatar sua a ventura e publicou a o livro “História Verdadeira e Descrição de uma Terra de Selvagens, Nus e Cruéis Comedores de Seres Humanos, Situada no Novo Mundo da América, Desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas Terras de Hessen até os Dois Últimos Anos, Visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a Conheceu por Experiência Própria e agora a Traz a Público com essa Impressão“, que chegou ao público leitor alemão em 1557. A obra, também simplesmente conhecida como “Duas Viagens ao Brasil”, foi amplamente divulgada e contribuiu para a difusão de descrições sobre os indígenas e alimentou a imaginação dos europeus sobre a terras distantes nos trópicos. O livro obteve incrível sucesso editorial, sendo até reconhecido como um dos primeiros “best sellers” em circulação na Europa e, incrementando sua impressionante narrativa, contava com xilogravuras baseadas no texto de Staden, incluindo aterrorizantes imagens dos rituais de canibalismo dos tupinambás.

O aventureiro alemão morreu aos 51 anos de idade em 1576, mas sua experiência vivida entre 1548 e 1555 continua sendo lida e conhecida por quem tem interesse no imaginário sobre o desconhecido nos idos dos primeiros anos da exploração europeia.


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