Timoclea de Tebas e Marguerite de Bressieux: Narrativas de vingança contra a violência sexual

As circunstâncias de guerra são carregadas de danos e dramas, frequentemente envolvendo riscos específicos para a população feminina afetada pelos conflitos. Episódios de violência sexual contra mulheres são fartamente documentados desde os tempos antigos. Uma das mais pronunciadas expressões da agressão contra mulheres em contextos bélicos e diante da imposição de domínio sobre populações conquistadas é o “estupro marcial”, também conhecido como “estupro devastador” (“ravaging rape”), conduzido como uma ação de guerra ou estratégia para promover a submissão. Além dessa prática, ataques indiscriminados contra as mulheres também fazem parte dos registros, proporcionando sofrimentos frequentemente insuperáveis. Tais agressões reduziam as vítimas à condição de parte dos “espólios  de guerra” que os vencedores consideravam ser um prêmio pela proeza da vitória, além de representar uma maneira adicional de humilhação da sociedade derrotada. 

As agressões e abusos também revelaram lutadoras dispostas a resistir e enfrentar a opressão. Dois casos exemplares de épocas diferentes foram destacados ao longo dos tempos para ressaltar a determinação de mulheres, transformando suas agentes em símbolos de resistência e heroísmo feminino, embora aspectos de suas histórias sejam lendários. 

(Representação visual gerada pela IA Midjourney)

Durante o início da expansão do domínio de Alexandre, o Grande, uma de suas primeiras campanhas decisivas foi o ataque contra Tebas, cidade grega que se rebelou contra o domínio macedônico estabelecido ainda sob o reinado de Felipe II, pai de Alexandre. Impor o controle sobre as áreas que recebeu como legado era decisivo para o jovem imperador, que precisava ainda demonstrar sua capacidade de comando para consolidar o seu poder e autoridade. A tentativa de independência de Tebas exigiu uma resposta veemente de Alexandre, que conduziu a ofensiva que acabou rapidamente sufocando a rebelião e impondo sua força através da ação devastadora de suas tropas. 

A população tebana sofreu bastante durante a ofensiva, com cidadãos de todos estratos sociais assumindo a defesa da cidade contra as poderosas tropas macedônias, mas as condições desiguais de enfrentamento não puderam garantir o sucesso da luta pela autonomia. 

Enquanto o exército de Alexandre cumpria o plano de domínio, um de seus capitães se deparou com Timoclea, que estava em sua casa. A primeira ação do oficial dominou foi violentar a mulher, então, sabendo que que sua vítima de origem aristocrática,  deduziu que ela guardava bens valiosos que ele exigiu que fossem entregues. Timoclea já havia perdido familiares durante a guerra e estava disposta a lutar por sua integridade, então cogitou enganar o agressor e disse que escondeu objetos valiosos no poço. Ela conduziu o capitão até o local e enquanto o militar tentava inspecionar a estrutura, ela o empurrou para dentro do poço e depois jogou pedras para soterrar o inimigo.  

Depois de executar a sua vingança, Timoclea foi detida por outros soldados e conduzida até o próprio Alexandre, que deveria julgar e impor um castigo por sua rebeldia e reação. Depois de ouvir a acusada, que enalteceu orgulhosamente sua própria iniciativa de se vingar, o imperador ficou impressionado com a coragem da nobre tebana e resolveu que não seria justo condenar uma pessoa que agiu bravamente para defender a sua honra e optou pela misericórdia, liberando Timoclea para seguir a sua vida em liberdade.

(Representação visual gerada pela IA Midjourney)

Na França do século XV, ainda durante a  Guerra dos Cem Anos, a região de Dauphiné estava agitada pela ocorrência de movimentações de tropas e enfrentamentos que ameaçavam as populações das vilas e áreas rurais. Senhores feudais da região aproveitavam a situação de instabilidade para promover suas próprias disputas territoriais, que resultaram em lutas entre facções francesas. Neste cenário, o cavaleiro Louis de Chalon, que estava a serviço do duque de Borgonha, coordenou um ataque ao feudo da família Bressieux. Quando os invasores tomaram o castelo do local e não pouparam as mulheres que estavam presentes, então elas foram violadas impiedosamente. Entre as vítimas dos agressores estava Marguerite de Bressieux, filha de Georges de Bressieux, senhor das terras invadidas.

Marguerite não superou a experiência e resolveu se vingar. Ela decidiu organizar um grupo de mulheres dispostas a conquistar a  justiça através da luta, atuando como caçadoras de estupradores. Elas se empenharam no treinamento, no planejamento de estratégias e entraram em ação, iniciando a perseguição participantes do ataque em Dauphiné e outros abusadores. As cavaleiras lideradas por Marguerite de Bressieux recorriam à tática de guerrilha e abordagens através de emboscadas que ampliaram seus alvos. O batalhão de justiceiras era identificado por um estandarte com a inscrição “Ainsi tu seras” (“Assim você será”) e sua comandante lutou contra Louis de Chalon, que foi derrotado no confronto.

Apesar da representação heroica de Timoclea e Marguerite de Bressieux, seus atos heroicos podem ter sido ornamentados por aspectos simbólicos que popularizaram as narrativas ao longo do tempo.  A principal fonte da história da heroína tebana foi Plutarco (46 d.C.-120 d.C), biógrafo, historiador e filósofo moral grego, autor de obras como “Vidas Paralelas”, onde reúne informações sobre personagens históricos marcantes.  Em sua biografia de Alexandre, Plutarco citou o caso de Timoclea para destacar sua dignidade diante da brutalidade masculina, mas sua presença no texto sobre o conquistador macedônio também servia também para ressaltar as virtudes do líder poderoso, destacando que decisão de Alexandre celebrava magnanimidade e senso de honra e justiça do imperador. A resistente nobre tebana pode ter sido uma figura real, mas sua existência não é comprovada através de evidências de seu tempo. De qualquer forma, a narrativa sobre a defesa da própria integridade foi amplamente tratada de maneira positiva como uma demonstração da firmeza diante das ameaças, abusos e bravura diante dos adversários opressores.

No caso de Marguerite, sua existência é uma possibilidade factível, pois, apesar da falta de registros específicos sobre sua identidade, a família Bressieux realmente viveu e teve destaque na região de Dauphiné no século XV. O contexto de violência e disputas territoriais na região também é documentado e a ocorrência de atos abusivos contra mulheres é outro fato reconhecido associado ao contexto. A história de da formação de uma força de mulheres lutadoras em busca vingança é um aspecto da situação que não tem respaldo documental e só foi escrita muito tempo depois, pois esta heroína só ficou conhecida em pleno século XIX através dos escritos de Alfred de Bougy, autor que se dedicou a produzir tanto obras históricas quanto romances e poesia.  

Sendo figuras reais ou não, as histórias sobre essas mulheres acabaram servindo de inspiração enquanto reforçaram a denúncia a respeito da ocorrência de agressões sexuais como prática recorrente nos contextos de conflitos bélicos entre homens.


Referências: