Hannah Cranna: Do estigma à conveniência da bruxaria

(Representação visual gerada pela IA Leonardo)

O medo das bruxas ainda persistia em muitos lugares durante o século XIX, pois antigas superstições e crenças populares continuavam presentes no imaginário coletivo. Nos Estados Unidos, na comunidade rural de Monroe, em Connecticut, o perigo sobrenatural da bruxaria era encarado como uma ameaça séria, influenciando uma mentalidade receosa caracterizada por determinadas noções estereotipadas que identificavam sinais de bruxaria em variadas circunstâncias.

Neste ambiente predisposto a considerar a bruxaria como um problema, o temor foi estabelecido por causa de uma mulher chamada Hannah Hovey, mais conhecida como Hannah Cranna. Nascida em 1783, ela foi casada com  Capitão Joseph Hovey, homem respeitado pelos moradores de Monroe. Joseph era significativamente mais velho que Hannah e não tiveram filhos, levando uma vida normal sem quaisquer murmúrios a respeito de anormalidades do lar que eles construíram, apesar do distanciamento da esposa, que não costumava interagir com as demais pessoas do município. A situação mudou quando Joseph morreu ao cair de um penhasco durante uma caminhada corriqueira. A circunstância de sua morte causou certas desconfianças, pois ele conhecia muito bem a região e dificilmente cometeria algum engano que o fizesse despencar de qualquer penhasco local, considerando sua familiaridade com o terreno e rotina de percorrer os arredores da cidade. A viúva logo virou um alvo para as especulações a respeito do incidente. Sem provas, começaram a circular suspeitas de que a viúva poderia ter alguma influência sobre a morte do marido e muitos afirmavam que ela praticava feitiços contra outras pessoas.

O isolamento inicialmente autoimposto de Hannah era um fator que levava a comunidade a reforçar suas acusações, rotulando seu comportamento e personalidade. Qual a conclusão “óbvia”? Ela era bruxa!

A mulher vivia sozinha em sua propriedade, onde cultivava alimentos para sua subsistência e criava galinhas, o que garantia sua autonomia em relação à comunidade e reduzia a necessidade de interação com outras pessoas. Esta postura não foi compreendida pelos habitantes locais sem a imposição de uma série de especulações.

Os anos se passaram e a reputação da mulher solitária ficou ainda mais associada à bruxaria enquanto ela envelhecia, reforçando ainda o forte etarismo que fazia parte dos habituais preconceitos por trás das acusações que qualificavam determinadas mulheres como bruxas. O estigma social só reforçava seu distanciamento. A mulher acabou até sendo conhecida como Hannah Cranna, sobrenome ou apelido sujeito a interpretações porque pode ter algumas conotações ou propósitos discutíveis. “Cranna” poderia ser uma palavra sugestiva derivada do termo “crone”, que significa “velha” (o que fazia parte do conjunto de estereótipos aplicado às bruxas), mas há um sobrenome medieval escocês que varia entre Cranna, Crannah e Crannoch, originário de uma região rochosa e elevada, e pode ter sido escolhido pelos difamadores como alusão à morte do marido, que caiu de um penhasco rochoso.

A certa altura Hannah percebeu que sua imagem estava definitivamente afetada e resolveu inverter a situação, passando da condição de oprimida pelos preconceitos para o papel de quem se impunha através dos medos da comunidade. Essa percepção deu a ela um poder inusitado na pequena comunidade de Monroe, pois resolveu tirar proveito de sua má reputação para obter vantagens. Ela começou a fazer pequenas exigências que eram prontamente atendidas pelos amedrontados habitantes, que evitavam contrariar a infame bruxa com receio da imposição de algum feitiço prejudicial. Deste modo, Hannah passou, por exemplo, a receber lenha de graça de fornecedores que esperavam que o gesto poupasse suas vidas da eventual daquela mulher misteriosa. Ao reconhecer seu poder de intimidação, Hannah passou a sofrer menos com as posturas da população e assumiu o papel que os próprios moradores atribuíram.

Por causa de sua fama de bruxa, as histórias de maldições e consequências negativas impostas a quem desagradava a mulher fortaleciam esta submissão assustada da comunidade. Citavam casos como de uma vizinha que preparou umas tortas que atraíram a atenção de Hanna, que apareceu em sua casa exigindo a maior delas, porém a mulher se recusou a atender a ordem e acabou misteriosamente perdendo o dom de cozinhar. Um homem que foi pescar sem autorização no riacho que cruzava sua propriedade nunca mais conseguiu fisgar nenhum peixe depois da afronta. Dois homens zombeteiros que circulavam em uma carroça puxada por bois duvidavam de seus poderes sinistros e pararam diante da casa de Hannah para ofendê-la, mas depois da galhofa os bois ficaram inertes e se recusaram a sair de lá enquanto a carroça de desmontou repentinamente. Narrativas como essas reforçavam o medo e incrementavam o verdadeiro poder que ela exercia.

Outro episódio conhecido envolvia Old Boreas, seu galo de estimação ou seu “familiar” (criatura sobrenatural em forma de animal que habitualmente acompanhava as bruxas). O galináceo cantava sempre à meia-noite e nunca ao amanhecer e quando morreu, Hanna o sepultou ritualisticamente no meio de seu jardim.

Assim como sua vida, a morte de Hannah Cranna também foi cercada por mistérios. Ela teria conseguido prever que seus dias estavam no fim e procurou uma vizinha para anunciar o presságio e prescrever as providências fúnebres. Ela exigiu que seu corpo fosse carregado a pé até o cemitério, desaconselhando que utilizassem uma carroça para realizar o transporte porque ela iria reagir de alguma maneira. Confirmando sua previsão, ela morreu pouco depois, durante o frio inverno de 1859. Apesar das instruções, os transtornos do deslocamento a pé de seu caixão em plena nevasca motivaram os aldeões a descumprirem o desejo final da falecida, então eles utilizaram um trenó puxado por bois para levar o corpo até o cemitério da cidade. Os homens não conseguiram ir muito longe, pois o trenó derrapou várias vezes, levando a crer que era melhor seguir à risca a ordem da velha bruxa, que foi sepultada antes do pôr do sol.

O sepultamento não encerrou as histórias sombrias sobre Hannah Cranna e na mesma noite sua casa se incendiou misteriosamente e as chamas consumiram tudo no local até a meia-noite. Testemunhas afirmaram que a própria Hannah foi vista no meio das cinzas antes de desaparecer repentinamente.

As histórias sobre a alegada bruxa foram sendo difundidas posteriormente através dos relatos feitos pelos moradores de Monroe, alguns até envolvendo casos de aparições fantasmagóricas de Hanna Cranna acompanhada por seu galo. As lendas a respeito da Bruxa de Monroe exercem um curioso fascínio até nos tempos da Era Digital e sua sepultura virou um inusitado ponto turístico na região.


Referências: