Menocchio, o moleiro que desafiou a Igreja Católica

(Representação visual gerada pela IA Midjourney)

Durante o século XVI pulsava na Europa uma vibrante fase de transformações proporcionadas pelo Renascimento, que impulsionou o fluxo de ideias. A disponibilidade de livros acessíveis era muito maior desde o advento da imprensa, inventada por Johannes Gutenberg em meados do século anterior, o que favoreceu a difusão de conhecimentos. Apesar disso, era um tempo de complicações por causa de questões religiosas pois o embate iniciado pela Reforma Protestante e a reação através do movimento da Contrarreforma empreendido pela Igreja Católica gerou uma série de situações críticas associadas à manifestação do pensamento e divulgação de concepções que poderiam ser consideradas desafiadoras.

Para lidar com as ideias, informações e interpretações religiosas que afrontassem os paradigmas defendidos e sustentados pela poderosa instituição católica, entrava em ação o serviço da Inquisição como instrumento de controle e autoridade diante daquilo que fosse considerado herético, desafiador ou que desrespeitasse a ortodoxia.

Neste contexto complexo viveu Domenico Scandella, mais conhecido pelo apelido de Menocchio. Ele nasceu em 1532 e sua vida se estabeleceu em Friuli, no nordeste da Itália. Menocchio era procedente de uma família camponesa em uma comunidade sustentada pela agricultura e trabalhou como moleiro, atividade também ligada à produção rural.

Moleiros lidavam com os serviços nos moinhos de grãos, recebendo a produção das colheitas e processando a farinha e outros subprodutos que dependiam da moagem realizada através do manejo das mós, que eram pesadas peças de pedra. O moinho era um espaço importante para a economia local e ainda era um ambiente que atraía intensa interação comunitária, pois muitos trabalhadores dos campos e do comércio agrícola frequentavam o local para levar, processar e buscar a produção. 

Em sua rotina, o comunicativo Menocchio conversava diariamente com os frequentadores do moinho sobre temas triviais e sobre questões sensíveis. Ele era um indivíduo curioso e de mente inquieta e, apesar de sua origem social modesta e da falta de instrução formal, desenvolveu um ávido gosto pela leitura. Além da Bíblia, faziam parte de seu repertório de leituras livros como O Decameron, de Boccaccio, “O Livro das Mil e Uma Noites” e variadas obras populares. Ele gostava de compartilhar suas impressões e aprendizados como leitor, falando com as pessoas a respeito de ideias, conceitos, especulações e conclusões que ele mesmo elaborou sobre muitos temas, inclusive os mais controversos.

O moleiro autodidata desenvolveu suas próprias interpretações sobre aspectos da Bíblia e elaborou concepções teóricas alternativas, o que influenciou seus posicionamentos críticos a respeito da Igreja Católica e suas práticas. Menocchio concebeu uma sofisticada analogia para explicar sua interpretação sobre o início do universo, exemplificando o processo através de algo que fazia parte do conhecimento da comunidade rural. Para o teólogo popular, o universo seria como um imenso coalho cósmico, que fermentava e gerava os vermes que transformavam a matéria. Deus, os anjos e o universo surgiram através desta transformação, o que sugeria que a criação foi um processo natural e espontâneo não um ato deliberado pela força divina.

Além desta concepção inusitada, ele denunciava o comportamento eclesiástico e a postura da Igreja Católica. Menocchio afirmava que a instituição, favorecida por riqueza e poder, se afastou dos princípios pregados por Jesus Cristo. Ele criticou os rituais e sacramentos, afirmando que eram artificiais e desnecessários porque a conexão entre Deus e as pessoas não dependia deles. Sua perspectiva enfatizava que os próprios fiéis deveriam interpretar os princípios bíblicos, sem a necessidade de um clero que impunha rigores. Por fim, o moleiro concluiu ainda que existia uma igualdade espiritual que contrastava com a desigualdade social, recusando a ideia de hierarquia entre as pessoas.

Menocchio não cansava de debater a respeito de suas concepções, que passaram a ser conhecidas por muitas pessoas e chamaram a atenção das autoridades religiosas depois que ele foi denunciado por gente da própria comunidade. A primeira acusação formal ocorreu em 1583, quando ele teve que responder pelas ofensas heréticas de difundir a ideia de que a Bíblia era criação humana e não resultado da direta inspiração divina. Em seu depoimento, um articulado homem do campo teceu mais considerações sobre suas perspectivas teológicas, expressando novas críticas e questionamentos. Depois da apuração das denúncias, dos testemunhos acusatórios e de sua defesa, os julgadores optaram por proclamar uma sentença leve, condenando o transgressor a se retratar publicamente.

De volta ao moinho, Menocchio pode ter passado algum tempo obediente ao que foi determinado pelo tribunal, mas voltou a discutir abertamente suas ideias. Essa postura de franca desobediência resultou em um novo processo, iniciado em 1599. A reincidência já garantia uma pré-disposição de agravar uma eventual postura punitiva, mas isso não impediu Menocchio de reafirmar suas posições diante das autoridades inquisitoriais. Condenado por heresia, ele foi finalmente silenciado em 1601, sendo enforcado em raça pública com subsequente queima de seu corpo. Ele tinha 69 anos na ocasião de sua morte.

A posição de independência de Menocchio era altamente indesejada pela Igreja Católica durante um período de complexas divergências religiosas. Pessoas comuns que desafiavam a autoridade e o status da poderosa instituição religiosa eram alvos de represálias aplicadas para punir e servir de exemplo. O caso do moleiro intelectual que confrontou o poder da Igreja é significativo, pois ajuda a ilustrar o contexto e revelar a persistente inquietação e inconformidade diante da imposição de condutas sociais, pressões ideológicas e preceitos de fé.


Referências: