Catharina ou Anastasius? Os desafios e perigos da inconformidade de gênero do século XVIII

(Representação visual gerada pela IA Leonardo)

Catharina Margaretha Linck foi uma das últimas pessoas na Europa executadas pelo delito de sodomia, julgada por um tribunal de orientação protestante em Halberstadt, na Prússia, em 1721. Ela foi decapitada aos 34 anos de idade na frente do mercado de peixes da cidade e teve seu corpo queimado, procedimento aplicado aos mais graves criminosos para eliminar até os vestígios físicos de suas existências.

Sua vida teve início em 1687 e logo cedo Catharina precisou lidar com as dificuldades de adequação em uma família e comunidade fortemente religiosas. Aos 15 anos ela decidiu ir embora de Halle, sua cidade natal, para viver conforme suas próprias regras e orientação. Ela passou a usar roupas masculinas, adotou a identidade de Anastasius Lagrantinus Rosenstengel e começou a se ocupar de atividades tipicamente atribuídas aos homens. A partir dos 17 anos serviu como mosqueteiro nas forças militares da Prússia, Hanover e Polônia, experiência que proporcionou maior mobilidade e a chance de conhecer diversas localidades na Europa.

Como sua vivência militar ocorria em forças mercenárias, seus serviços em combate sob contrato não eram permanentes. Assim, apesar de tentar a vida como Anastasius na maior parte do tempo, retomava sua identidade feminina conforme as circunstâncias e necessidades, sobretudo quando as alternativas de ocupação forçavam tal escolha. Um exemplo disso foi o fato de voltar a assumir sua identificação como mulher para trabalhar na indústria têxtil quando não conseguia serviço nas frentes de batalha. Sua frequente mudança de cidade era outra estratégia para alterar sua identidade.

Como Anastasius exerceu ainda a atividade da pregação religiosa, ingressando num grupo chamado “Inspirados”, formado por luteranos seguidores do pietismo, movimento que defendia o processo de transformação pessoal através de renascimento espiritual e da vida voltada à piedade. Foram percorridas diversas cidades germânicas realizando sermões, batismos e conversões num período no qual sua integração à comunidade religiosa também esteve sujeita a questionamentos e controvérsias a respeito de sua identidade.

É possível que o risco da descoberta de sua original identidade feminina tenha motivado o casamento com a jovem Catharina Margaretha Mühlhahn, em 1717. No entanto, a tentativa de despistar as suspeitas acabou virando sua ruína, pois a esposa não demorou a notar que o comportamento íntimo de Anastasius era incomum. Em 1729, a mãe da esposa, que não aprovava a união desde seu início, resolveu apresentar formalmente uma denúncia às autoridades judiciais e religiosas contra Anastasius depois de ouvir as revelações feitas pela filha.

A apuração foi embaraçosa, pois Catharina Mühlhahn prestou um depoimento comprometedor que descrevia uma relação abusiva e cheia de segredos. Ela disse que Anastasius escondia seu corpo da própria esposa, o que despertava sua desconfiança. Ele teria prestado a atenção ao marido enquanto ele estava dormindo e não percebia um pênis sob suas vestes nem quando insistia em apalpar, gesto que era prontamente repelido por Anastasius. Sua desconfiada observação também apontou a pessoas com qual ela se casou urinava numa posição tipicamente de mulheres. Mas o pior de tudo ocorria nas ocasiões de contatos sexuais, descritos por Catharina Mühlhahn como desconfortáveis e doloridos até que ela finalmente notou que Anastasius a penetrava com um pênis falso, um estranho dispositivo de couro. A esposa acabou, enfim, constatando em sua observação que o corpo do suposto marido era exatamente igual ao dela, ou seja, ela se casou com outra mulher!

Uma inspeção física determinada pelas autoridades confirmou que o corpo de Anastasius era feminino e a confissão também revelou sua identidade original como Catharina Linck. Em sua defesa foi alegada a ilusão por Satanás para a prática sodomita, embora tenha sido negada qualquer violência contra Catharina Mühlhahn ou a intenção de fazê-la sofrer. O uso das roupas masculinas e da identidade falsa foram justificados pela necessidade de sobrevivência e minimizados pelo fato de não ser uma pessoa casada quando assumiu uma vida masculina. Sua atividade religiosa teria sido uma forma de se redimir dos pecados praticados ao enganar as pessoas. Diante das pressões, a ré declarou arrependimento dos atos praticados perante os julgadores e chegou a alegar que merecia a morte como castigo.

Numa sociedade de parâmetros morais rígidos em relação aos papéis de gênero, a denúncia era escandalosa e o tratamento à situação exigia rigores condenatórios. Catharina Linck foi condenada à morte e Catharina Mühlhahn recebeu também uma punição, embora muito menos severa, ao ser condenada a três anos de prisão seguida pelo banimento mesmo declarando que foi uma inocente enganada pelo falso marido.


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