Várias razões podiam levar pessoas ao extremo de adotar identidades falsas e até se passar por um gênero diferente. A inglesa Mary Anne Talbot é um exemplo de alguém que precisou se disfarçar sob outra identificação por necessidade de sobrevivência. Nascida em 2 de fevereiro de 1778, em Londres, ela era filha ilegítima do Conde de Talbot com uma mulher cuja identificação não ficou suficientemente esclarecida nos registros para favorecer qualquer conclusão. Depois de perder a mãe e não ser acolhida pela família paterna, ela foi entregue aos cuidados de um certo Sr. Sucker quando tinha 4 anos de idade. Seu tutor era um homem negligente que explorou Mary Anne até decidir se livrar dela, entregou-a em circunstâncias muito duvidosas para outro homem, um militar experiente chamado Essex Bowen. O tal capitão Bowen era um homem significativamente mais velho que Mary Anne, que tinha apenas 14 anos de idade, e a natureza do relacionamento com a adolescente era abusiva e coercitiva.
Eram tempos de guerra e Bowem foi participar da Primeira Coligação, força militar contra a França revolucionária, sendo destacado para atuar no cerco de Valenciennes de 1793. Ele achou que seria conveniente levar Mary Anne para a guerra como assistente pessoal e teve a ideia de fazer com que ela se passasse por um rapaz servindo como tambor-mirim, adotando o nome de John Taylor. A situação não saiu como o planejado, pois Bowen morreu em combate e Mary Anne foi ferida, tendo que cuidar de si mesma a partir de então.
A vida militar passou a ser a sua alternativa de sustento numa sociedade que não oferecia oportunidades para mulheres pobres e solitárias, então ela manteve a identidade falsa e entrou na marinha, onde voltou a encarar os perigos da guerra. Primeiramente trabalhou como grumete numa embarcação francesa, do lado oposto do conflito, mas o navio foi detido por ingleses. Ela acabou sendo aproveitada pelos compatriotas como ajudante no serviço de carregar pólvora para os canhões a bordo do navio HMS Brunswick, onde continuou sua participação na guerra. Durante a Batalha do Glorioso Primeiro de Junho, em 1794, ela foi novamente ferida, porém com com maior gravidade, quase tendo uma perna amputada. Mesmo seriamente machucada, foi feita prisioneira de guerra pelos franceses e detida numa prisão em Dunquerque, de conde conseguiu escapar um ano e meio depois para voltar à Inglaterra em 1796.
Ainda vivendo sob uma falsa identidade, acabou sendo raptada por um grupo que realizava alistamentos forçados para a marinha, mas desta vez acabou sendo identificada como uma mulher, aos 19 anos. Desempregada e sem teo onde morar, tentou receber algum reconhecimento e reparação pelos serviços prestados e ferimentos sofridos em ação, mas não conseguiu obter uma decisão em seu favor. O desamparo e necessidade de subsistência obrigaram Mary Anne a trabalhar em vários empregos precários entre 1797 e 1804, persistindo na sua apresentação como homem por causa da falta de trabalho para mulheres. Foram tempos de dificuldades enfrentando restrições financeiras severas e problemas de saúde contínuos decorrentes dos danos físicos sofridos na guerra. Nesse período ela chegou a morar nas ruas, tentou sem sucesso uma carreira teatral, trabalhou como lavadeira num hospital, viveu de doações e até foi presa por dívidas não pagas a credores. Num de seus empregos temporários ela trabalhou disfarçada num navio que seguiu para a América e durante a viagem acabou se envolvendo num rápido romance com a filha do capitão, que não sabia de sua identidade e de seu gênero.
Sua vida melhorou significativamente quando, em 1804, o editor Robert S. Kirby conheceu sua história e publicou suas aventuras e desventuras como uma mulher disfarçada de homem servindo como militar. Ele empregou Mary Ann em sua casa como empregada doméstica, fornecendo um lugar para morar e um salário para garantir um mínimo de condições para seu sustento.
Apesar de ajuda, sua já fragilizada saúde piorou ainda mais e seus últimos anos foram de fortes limitações. Ela acabou morrendo aos 30 anos de idade, em 1808.
Referências:


[…] Mary Anne Talbot: Mulher, Soldado e Sobrevivente […]
[…] Mulher, soldado e sobrevivente: A dramática jornada de Mary Anne Talbot […]