O Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI) á uma das patologias mentais mais complexas e controversas, caracterizado pela manifestação de duas ou várias identidades nos indivíduos afetados. Além disso, o TDI pode apresentar um quadro de amnésia dissociativa, situação que faz o paciente ter lacunas de memória que afetam a identificação de fatos cotidianos ou, principalmente, experiências marcantes como aquelas que originaram traumas, fatores que podem estar entre as causas do transtorno. Os primeiros estudos científicos sobre o TDI tiveram início no final do século XIX e antes disso era comum atribuir os casos a fatores sobrenaturais, destacando a ação da possessão demoníaca e sujeitando a abordagem dos pacientes ao trabalho dos exorcistas.
Um caso famoso e exemplar desta abordagem foi o processo espiritual imposto à francesa Jeanne Fery no século XVI. Nascida em 1559 na pequena Solre-sur-Sambre, Jeanne era uma das integrantes da comunidade de freiras do Convento das Irmãs Negras, localizado na cidade de Mons, na província de Hainaut, região dos Países Baixos Espanhóis durante o século XVI e que atualmente faz parte do território da Bélgica. Aqueles eram tempos conturbados pelas divergências entre católicos e protestantes e a cidade de Mons foi bastante afetada pelo contexto, o que destacava o convento como um importante foco de afirmação católica e centro reconhecido para a prática dos profundos conhecimentos do exorcismo.
Antes de ingressar na vida religiosa, Jeanne teve experiências muito desagradáveis justificadas como intervenções demoníacas. Ainda pequena, foi amaldiçoada pelo próprio pai, que “entregou” a menininha ao Diabo num acesso de raiva. Desde então, forças infernais passaram a agir em sua vida e uma entidade chamada Cornau assumiu um importante papel em sua vida, assumindo a condição de um “pai substituto”, acolhendo a jovem Jeanne, inicialmente enganada pela artimanha daquele demônio. Quando ela era agredida em casa, outro demônio, chamado Garga, ajudava a resistir e não sentir dores e, além deles, ela alegou que passou ter visões e a interagir frequentemente com outros seres malignos, sugerindo que a possessão (ou a doença mental) era uma manifestação presente em sua vida desde a infância. Ela cresceu sofrendo por causa dessas presenças em sua vida, que causavam perturbações em sua consciência, afetavam sua saúde física e inspirava seus comportamentos e pensamentos blasfemos. Ela decidiu ingressar no convento como tentativa desesperada para se livrar desses males.
Entre as Irmãs Negras (“Soeurs Noires”) ela também manifestava seus estranhos comportamentos. Além de anorexia e lapsos de memória, ela praticava automutilação e havia tentado o suicídio. Outro traço significativo de seus problemas era o fato de que ela se apresentava de maneiras irreconhecíveis falando e agindo como se fosse uma outra pessoa, muitas vezes através de uma comunicação incompreensível. Foi definitivamente determinado que o que afetava a noviça não era algo terreno, mas a ação de entidades infernais que possuíram seu corpo. Entre abril de 1584 e novembro de 1585 ela foi submetida aos rigores do exorcismo através de diversas séries de rituais ordenadas pelo arcebispo Louis de Berlaymont e dirigidas pelos exorcistas François Buisseret e Jean Mainsent.
Ela foi submetida a uma atenta observação para o reconhecimento dos demônios que atormentavam seu corpo e alma. Os exorcistas recorreram ao emprego de objetos ritualísticos, óleos ungidos e água benta, além de relíquias sagradas tidas como instrumentos poderosos. No decorrer das tensas sessões de embate espiritual contra os demônios, os exorcistas concluíam que estavam progredindo, obtendo o rompimento de pactos pecaminosos e extraindo da freira os sinais do mal. Jeanne declarou que mais uma visão e comunicação foi estabelecida com forças sobrenaturais enquanto era travada a luta contra as várias personalidades perversas que a dominavam. A mais nova manifestação foi identificada como a Santa Maria Madalena, que ajudou a silenciar as demais personalidades que dominavam sua mente.
Após todas as abordagens, os sacerdotes concluíram que seus métodos e a intervenção divina através da santa livraram Jeanne dos diversos demônios que habitavam seu corpo. Após a declarada libertação, a freira levou uma vida piedosa e devotada à fé até falecer em 1620, aos 61 anos.
Suas experiências com as múltiplas possessões e exorcismo foram registradas através de relatos contemporâneos e pela escrita autobiográfica de suas memórias ou confissões. As análises atuais de tais registros levaram em consideração o contexto social e cultural da época, mas apontam para outras interpretações além da situação sobrenatural. O caso tem sido avaliado como a primeira incidência detalhadamente documentada de uma pessoa com um quadro de TDI.
Jeanne Fery apresentou um quadro de múltiplas identidades, cada uma com características próprias e distinguíveis, dotadas até da condição de ter certa noção de existência uma das outras num complicado fluxo de diálogo interno e controle pelo domínio. Complementarmente, os registros dão conta de uma considerável situação de amnésia, pois ela era incapaz de lembrar dos eventos e situações que vivia sob a manifestação das identidades alternadas, além de fatos de sua vida. Os registros também incluem episódios pseudoconvulsivos, ataques de fúria e distúrbios de fala. Os detalhes documentados também se referem a ocorrências de manifestações infantis de Jeanne, que se aparentava como uma criança, fato que podem estar associados a traumas de infância. Os comportamentos autodestrutivos somam-se ao conjunto sintomático apresentado pela freira e podem ser indicativos do transtorno.
O caso de Jeanne Fery com sua excepcional documentação é de grande relevância por envolver variados elementos dos estudos psicológicos, psiquiátricos, sociais e culturais. Representa ainda uma importante referência para acompanhar a evolução do entendimento sobre os transtornos mentais mais complexos.
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