A fome sem fim de Charles Domery

(Representação visual gerada pela IA Leonardo)

Comer é uma necessidade indispensável para a sobrevivência, mas no caso de alguém com polifagia o ato de comer passa a ser realizado de forma compulsiva ao extremo e de maneira incontrolável, podendo levar ao consumo de matérias não comestíveis ou altamente arriscadas. A combinação entre esta condição e outras patologias como hipertireoidismo, lesões hipotalâmicas, além de outros distúrbios ainda mais específicos, pode resultar em casos de comedores descontrolados impressionantes a exemplo do francês Tarrare e do polonês Charles Domery, ambos homens do século XVIII que coincidentemente viveram na mesma época e serviram durante a Guerra da Primeira Coalizão (1792 a 1797), conflito entre monarquias europeias contra a França revolucionária que se transformou numa tumultuada república.

Charles Domery ou Charles Domerz nasceu em 1778, numa família numerosa e comilona compulsiva, embora ele se destacasse entre o pai e os irmãos como aquele que conseguia comer ainda mais que todos os demais.

Quando tinha apenas 13 anos, mas já alcançando uma estatura de 1,90 de altura, ele se alistou nas forças prussianas da Coalizão e foi para a guerra. O ingresso na vida militar parecia ser a única alternativa para proporcionar ao comilão um abastecimento alimentar que pudesse sustentar sua incessante necessidade de comer. Durante a ação sua principal adversária não era a tropa francesa e sim sua inesgotável fome. Foi por causa disso que ele acabou decidindo mudar de lado, já que entre os prussianos as refeições servidas aos soldados eram muito limitadas e inaceitavelmente insuficientes. Do lado francês a situação era melhor e Domery virou até atração porque, além de se empanturrar com vários pratos de refeição, ele comia gatos, cachorros, ratos e quantidades incríveis de carne crua, principalmente seu prato predileto, que era fígado bovino cru. Ele não se importava sequer de comer a grama nos arredores se a vontade de comer não podia ser contida.

Numa situação crítica, quando faltou comida a bordo de um navio do guerra francês no qual servia, o homem não se conteve e atacou gulosamente uma perna decepada de um marinheiro que perdeu o membro num incidente com um canhão. A situação passou dos limites, então os colegas de Domery tiveram que jogar o membro no mar depois de muita luta para arrancar dele.  

Após um confronto naval, sua embarcação foi derrotada e a tripulação rendida diante dos ingleses em outubro de 1798. Ele parou num campo de prisioneiros em Liverpool e chamou a atenção dos captores por causa de sua ferocidade alimentar, pois ele comia todos os ratos que apareciam na prisão – e eram muitos. A curiosidade do corpo médico da unidade de detenção foi tamanha que ele acabou virando objeto de estudos científicos para apurar os fatores de sua condição peculiar.

Ele foi confinado na ala médica, onde atacou a medicação dos demais pacientes como se os remédios alheios fossem alimentos e sequer sentia efeitos colaterais desse consumo desregrado. Durante os testes foi preparada uma dieta especial para ele, que consumia diante das cuidadosas observações dos médicos. Logo cedo ele recebia quase 2 kg de mamas cruas de vaca e consumia freneticamente. Ainda pela manhã, uma segunda refeição composta de 2,5 kg de carne crua era oferecida juntamente com 12 velas de sebo e 1 garrafa de cerveja e não sobrava nada. O almoço era a repetição da mesma quantidade de carne, mais 3 garrafas de cerveja e novamente ele consumia tudo.

O que impressionava os médicos era que o homem não tinha sequer uma reação indigesta, não defecava, não urinava nem vomitava de maneira incomum. Não era gordo, não sofria alterações de temperatura e sua disposição permanecia inalterada. Depois de não perceberam alterações em suas condições de saúde, o que os pesquisadores conseguiram fazer foi elaborar teorias e especulação, mas sem chegar a qualquer conclusão.

Charles Domery foi liberado da prisão e perdeu-se dos registros, pois não se soube mais dele.  


Referências: