A produção de autobiografias de pessoas que vivenciaram a escravidão despontou como mais uma forma de resistência, pois denunciavam os abusos as degradantes condições da sujeição escravista, sendo estes registros de memória instrumentos que começaram a ser veiculados no século XVII muito importantes para ampliar a compreensão e o combate ao processo de submissão extremo e violento representado pela escravidão. Tais obras tinham um papel relevante no movimento abolicionista, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos do século XIX, com narrativas que eram organizadas e divulgadas para dar visibilidade ao problema e como meio de enfrentar o silenciamento dos afro-americanos que tinham suas próprias experiências de vida como manifestações contrárias à escravidão.
Uma dessas narrativas contou a vida de Mary Prince e foi publicada em 1831. Ela nasceu na colônia britânica das Bermudas em 1788 já em uma família de escravos. Ela viu a separação de seus familiares pelas mudanças de proprietários, situação que era comum nas experiências com a escravidão e acabou indo parar com a mãe, Sue, em uma propriedade diferente ainda criança, depois de comprada por um homem que deu as duas de “presente” para sua neta Betssey Williams. Na residência da família Williams, Sue trabalhava como doméstica e Mary, ainda muito nova, servia de companhia para sua “senhora” que também era uma criança. Ao completar 12 anos de idade Mary foi retirada da residência dos Williams e passou um tempo trabalhando sob o domínio de senhores provisórios até ser vendida num leilão como “ovelha ou gado”, nas palavras da própria Mary. Toda a família de Mary estava sendo negociada na ocasião e cada uma de suas irmãs mais novas foram vendidos separadamente. Mary foi parar uma fazenda da família Ingham, onde ela descobriu que o tratamento cruel era prática comum dos novos proprietários, que impunham açoites como castigos por qualquer motivo. Mary deu um jeito de fugir de lá e foi em busca da mãe, que permanecia ligada a parentes dos Williams, mas Sue não podia acolher a própria filha, uma escrava fugitiva, porque estariam ambas sob grande risco, assim Mary foi mantida escondida numa caverna nas imediações da propriedade por um tempo até ser levada de volta ao domínio dos perversos Ingham, que se encarregaram de mandar a fujona para outro destino, a Ilha Grand Turk.
Em 1803 ela foi vendida para um certo Robert Darrell, que explorava a produção de sal. Mais uma vez estava dominada por senhores que recorriam à violência como prática corriqueira. Ela passou os próximos 10 anos trabalhando duro numa lagoa de sal até voltar para as Bermudas ainda sob a propriedade de Darrell, que a alugava para outros patrões. Depois de alugada para o comerciante John Wood, na ilha de Antígua, ela acabou despertando o interesse de sua esposa, Margaret, que precisava de uma doméstica e então foi negociada sua venda para mais um proprietário. Vivendo em condições muito menos severas, Mary podia até frequentar uma congregação religiosa com missionários que se dedicavam à instrução de escravos. Na congregação ela conheceu Daniel James, um homem negro livre, e acabaram se envolvendo até se casarem no Natal de 1826 sem o consentimento de seus proprietários, que não se agradaram do ato de liberdade da escrava. Passado um ano e meio do casamento, os Wood foram para Londres e levaram Mary.
Pouco depois, em 1828, a escravidão foi proibida no território da Inglaterra embora ainda permitida em suas colônias, enfim, Mary era uma mulher livre. Mesmo livre da escravidão, recebendo apoio do movimento abolicionista e tendo um emprego remunerado, resolveu voltar para Antígua e seu marido na condição de pessoa livre. Essa situação envolvia questões legais, pois ela era registrada como propriedade da empresa de Wood, sediada na colônia, onde a escravidão vigorava. Como John Wood, que também estava voltando para Antígua, não abriu mão de seu registro como senhor de Mary, o caso foi parar nas instâncias oficiais em Londres, que decidiram em favor do proprietário. Para não voltar a ser escrava, ela aceitou ficar na Inglaterra trabalhando como empregada doméstica assalariada do advogado abolicionista Thomas Pringle, que cuidou de sua apelação e deu publicidade ao caso. Pringle estava envolvido na campanha de registros e publicação de narrativas de ex-escravos como parte da estratégia de propagação destes relatos de experiências como elementos contra a escravidão, assim Mary contou sua vida para a jovem abolicionista Susanna Strickland, que organizou os relatos que foram editados na forma de uma autobiografia.
A articulação entre os abolicionistas concluiu a publicação da obra em 1831. O livro trouxe detalhes de práticas de agressão, destacando enfaticamente situações de violência física e sexual contra mulheres, e ainda ressaltou a fé e a religiosidade como forma de encontrar forças para sobreviver às condições extremas, aspecto que cativava e comovia os leitores religiosos. Mas a repercussão contrária, por parte dos defensores da escravidão, acusava a a obra como uma criação fantasiosa, situação que gerou reação de Pringle movendo processos por difamação. A luta pública, judicial e política dos abolicionistas empregou a vida de Mary Prince como evidência contra a escravidão.
Os fatos registrados no livro não foram além de sua chegada à Londres, então o que se passou em sua vida desde então não foi registrado. Ela estava na Inglaterra até 1833, quando chegou a testemunhar nos casos de difamação, mas não se tem informação sobre seu destino depois disso. A escravidão nas colônias foi abolida em 1838. Ela voltou para o marido? Até quando viveu?
Referências:


[…] Mary Prince, uma ex-escrava que relatou sua vida e buscou a liberdade através da lei […]