Jean Meslier: A ácida confissão póstuma de um padre ateu

(Representação visual gerada pela IA Leonardo)

“O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”

Interpretação simplificada de uma afirmação de Meslier (frequentemente citada – erroneamente – como pronunciada ora por Denis Voltaire, ora por Denis Diderot)

Durante quarenta anos o padre Jean Meslier (1664-1729) exerceu seu ofício sacerdotal na pequena Étrépigny, na região de Champagne-Ardenne, no nordeste da França. Era um pároco respeitado e cumpridor de suas obrigações, mas apenas na aparência, pois em seu íntimo o padre nutria uma verdadeira aversão à sua religião e duvidava da existência da divindade cristã. Ele deixou um veemente registro a respeito do que pensava e sentia em seu testamento, documento produzido para ser revelado apenas depois de sua morte.

Meslier afirmou que nenhuma religião tinha vínculo divino, eram criações humanas que serviam como fontes de divisão, opressão, exploração, ignorância e superstições. Ere confessou em sua declaração que estava arrependido de pregar mentiras e sentia remorso por causa da credulidade dos fiéis, que eram dominados maldosamente por sacerdotes e pela instituição religiosa, que tomavam proveito da ignorância e miséria do povo. O padre defendeu a razão contra a fé, pois a racionalidade deveria ser guia fundamental para o entendimento do mundo.

Segundo ele, a religião se baseava em crenças cegas, imposturas e falsidades, que eram estabelecidas e fixadas por supostas leis ou revelações divinas. Diante disso, a fé cega, imposta pelos dogmas religiosos, cumpria a finalidade de exercer uma forma de opressão, divisão e justificação para a perpetuação de problemas que a religião causava, como perseguições e o estímulo à desunião e conflitos entre as pessoas, sendo causadora de sofrimento e não de salvação. Diante dessa perspectiva, o conteúdo bíblico não era tido como algo emanado de inspiração divina, mas uma criação humana corrompida e empregada para fins nada sagrados.

A riqueza das instituições religiosas e dos sacerdotes era outro ponto crítico, pois eram originadas de abusos e da proximidade entre a religião e o poder mundano, produzindo injustiça e miséria. Não foi por acaso que sua mais conhecida afirmação fosse um clamor radical que sugeria que “todos os grandes homens do mundo e toda a nobreza pudessem ser enforcados e estrangulados com as entranhas dos padres”. Para ele, eliminando a elite dominante e a religião (juntamente com seus agentes) seria possível promover igualdade e justiça.

Certamente este documento tão agressivo teve sua circulação proibida pela censura, o que não impediu que exemplares clandestinos fossem lidos e discutidos igualmente fora dos olhares das autoridades. Mesmo Voltaire, que se apegou a muitas críticas de Meslier, teve o cuidado de abordar suas ideias sem seguir suas críticas mais devastadoras.

O pensamento do padre ateu foi marginalizado por causa de seu extremismo, mas sua crítica social, denúncia sobre as causas da miséria e proposição de uma sociedade igualitária influenciaram os ativistas mais radicais no “Século das Luzes”. Diferentemente dos críticos de seu tempo, Meslier preparou a manifestação de sua visão de mundo para quando já não estivesse nele, preferindo não discutir sobre suas ideias, optando por uma vida dupla de praticante do mal que condenou.


Referências:

Um comentário

Os comentários estão fechados.