O surgimento do Diabo e da personificação do mal

(Representação visual gerada pela IA Mage)

O mal sempre foi uma ameaça presente nas concepções religiosas e com decorrer do desenvolvimento dos sistemas de crenças acabou sendo personificado em entidades que assumiram papéis na dimensão dualista, com o bem e o mal estabelecendo um confronto constante. O Zoroastrismo trouxe uma importante inovação ao estabelecer sua ideia de dualismo, caracterizada pela situação do mal mal que não emanava do deus bom Ahura Mazda, mas sim de um ser maléfico conhecido como Ahriman. As pessoas deveriam escolher entre seguir Ahura Mazda no caminho do bem ou Ahriman no caminho maligno.

Esta visão diferenciava daquilo que outras tradições antigas concebiam, com divindades complexas que eram capazes de promover o bem ou o mal conforme suas vontades, a exemplo dos protetivos Enlil e Ishtar entre os mesopotâmicos ou do temperamental Zeus/Júpiter, rei dos deuses entre os greco-romanos. Ainda que os egípcios tivessem Set, sua divindade do mal, a distinção claramente dualista de sua religião não estava tão definida quanto os zoroastristas conseguiram elaborar.

A ideia de que Deus não se vinculava ao mal foi uma resposta aceitável para uma questão teológica importante entre os antigos judeus, que lidavam com o dilema a respeito de como podia existir tanto sofrimento e maldade em um mundo criado e regido por um Deus amoroso. Diante disso foi possível associar a outra entidade a condição de responsável pelo mal, sendo evidenciado o papel de Satã (do hebraico שָׂטָן significando “adversário”) como personificação dessa oposição à divindade dos judeus. Nos antigos escritos sagrados o termo “sāṭān” já aparecia como referência a um genérico opositor divino, podendo até ser humano ou de natureza sobrenatural, mas com o passar do tempo virou nome próprio e identificava explicitamente o adversário direto de Deus.

O cristianismo assimilou o dualismo com a oposição entre Deus e o Diabo, adicionando novos aspectos e interpretações a respeito do ente maligno. Foi atribuída até uma origem para Satanás (derivação grega do termo “Satã”), remontando aos domínios divinos na forma do anjo Samael, mais conhecido como Lúcifer, o “Portador da Luz (mesmo nome que os romanos deram à “Estrela da Manhã”, fenômeno de visualização matutina do planeta Vênus). Conforme a tradição cristã, Lúcifer era altamente vaidoso e ambicioso por ser um anjo de grande poder, alimentando a postura de desafiar Deus através de uma rebelião. Como consequência do ato de desobediência, Lúcifer e seus seguidores foram expulsos do Céu. A queda de Lúcifer acabou dando origem ao mal.

Lúcifer
(Representação visual gerada pelas IAs DALL-E e Leonardo)

Outro efeito do dualismo foi a ideia a respeito do destino de todos diante da crença na existência de uma alma que deixa o corpo com a morte e segue até um paradeiro eterno. O advento do Diabo também afetou a dimensão do além. Os cristãos aprimoraram a ideia judaica do Sheol, lugar subterrâneo para os mortos, que já era considerado um local sombrio, e introduziram a ideia de Inferno como uma alusão à Gehenna, antigo vale próximo de Jerusalém onde costumava ser depositado e queimado o lixo da cidade. As inspirações greco-romanas sobre o Tártaro também foram relevantes nesta idealização. Este seria, enfim, o local apropriado para que o Diabo reinasse e reunisse sua cúpula de demônios (termo que vem do grego “daimon”, originalmente significando “espírito” ou entidade sobrenatural menor, que os cristão passaram a empregar com referência aos anjos caídos e outras entidades malignas). Os detalhes mais primorosos a respeito deste reino de fogo e dores foi elaborado com detalhes na Idade Média através da descrição de Dante Alighieri.

A popularidade do Diabo foi fortalecida a partir do período medieval, quando a Igreja Católica passou a atribuir ao opositor de Deus tantas ações no plano terreno que qualquer deslize humano passou a ser considerado obra de sua interferência direta. Enfrentar o Diabo passou a ser uma prioridade e essa crença na força do mal presente entre os homens foi associada ao desenvolvimento de rituais para afastar sua influência enquanto a instituição religiosa era fortalecida e acumulava poder.

A representação visual diabólica também foi sendo elaborada através dos tempos, pois o mal precisava ter uma forma que pudesse também afetar os sentidos básicos. Crenças populares inspiradas nas fontes pagãs e folclóricas ajudaram a elaborar maneiras de apresentar a aparência de Satã, apelando para o grotesco e monstruoso.

O diabo tem uma importância simbólica significativa para a religião, cultura e sociedade. No contexto da tradição judaico-cristã, o diabo representa o adversário de Deus, um inimigo a ser vencido, o governante do inferno e a fonte de todo mal e sofrimento no mundo. O Diabo serve para enfatizar o dualismo moral entre o bem e o mal. Sua presença permite a existência de um antagonista, reforçando a noção de livre arbítrio e a escolha entre seguir o caminho divino ou ceder à tentação. Sua figura tem inspirado medo e até fascínio ao longo da história, influenciando várias formas de expressão cultural, como literatura, música, cinema e arte.

A luta contra o mal representado pelo Diabo tem sido uma das causas do cristianismo e a este respeito o escritor libanês Gibran Khalil Gibran escreveu o conto “Satanás” como uma interessante reflexão. No texto, um padre se depara com o próprio regente do Inferno, que estava moribundo à beira de uma estrada. O padre incialmente se recusa ajudar, mas depois que ambos discutem e filosofam sobre fé e o destino da humanidade, o sacerdote decidiu socorrer seu inimigo.

Se morreres, a tentação morrerá contigo, e assim desaparecerão as forças que obrigam o homem à prudência e o levam a rezar, jejuar e adorar. Deves viver, porque sem ti os homens deixarão de temer o inferno e mergulharão nos vícios. Tua vida é, portanto, necessária à salvação da Humanidade; e eu sacrificarei meu ódio por ti no altar do meu amor pela Humanidade.


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