Mary Wollstonecraft: Uma voz feminina em uma era de mudança

(Representação visual gerada pela IA Midjourney)

Mary Wollstonecraft (1759-1797) foi uma escritora, filósofa e feminista inglesa de trajetória e obra marcantes. Ela viveu num contexto de grandes dificuldades para as mulheres, que tinham acesso restrito à educação formal, limitados direitos à propriedade e dependência econômica dos homens. A representação política das mulheres era subdimensionada, pois não tinham direito ao voto nem voz ativa respeitada nas esferas decisórias. Numa sociedade de papéis de gênero rígidos, predominando uma perspectiva de inferioridade feminina com pretensas justificativas morais, religiosas e legais era difícil a atuação de mulheres que desafiavam esta condição, mas Mary Wollstonecraft foi uma delas.

Mary cresceu sob o domínio de um pai abusivo que sujeitava a família aos efeitos de suas investidas em negócios fracassados. As inconstâncias fizeram os Wollstonecraft viverem em constantes mudanças de cidades e a encarar fases de dificuldades financeiras. Diante destas condições para a formação da jovem de inteligência aguçada foi seriamente prejudicada, assim ela não recebeu instrução formal adequada e precisou recorrer à disposição da autoeducação, se envolvendo por iniciativa própria em leituras que foram consolidando sua base intelectual. Suas experiências como trabalhadora também ajudaram neste processo de aprendizado, pois ela atuou como serviçal doméstica, dama de companhia e até conseguiu abrir uma escolinha para crianças. Sua vivência com as leituras, as descobertas dos ideais iluministas e sua experiência de vida contribuíram para a formação de suas próprias ideias.

Mary foi tentar a vida na França em 1792, durante ebulição na Revolução em sua fase mais radical. Ela queria experimentar o estado de transformação, mas ficou desiludida com o processo, pois durante o Regime do Terror a violência virou um instrumento de poder amplamente empregada. A brutalidade que ela testemunhou fez com que a pensadora crítica e observadora deliberasse a respeito da problemática situação do radicalismo como prática política, questionando a viabilidade da ação revolucionária, preferindo uma transformação gradual e segura. Diante da problemática e brutal situação e dos riscos para estrangeiros naquele ambiente extremista da França, ela resolveu voltar para a Inglaterra, porém a experiência francesa proporcionou um notável amadurecimento intelectual.

Durante sua estada na França ela conheceu Gilbert Imlay, um negociante norte-americano, e começaram um relacionamento problemático. Eles não chegaram a casar, mas Mary resolveu adotar o sobrenome Imlay quando ficou grávida de sua primeira filha, Fanny, que nasceu em 1794. Apesar do envolvimento intenso de Mary, Gilbert não tenha o mesmo comprometimento com a relação e era um homem infiel que frequentemente abandonava a mulher e sua filha. Eles se mudaram para a Escandinávia em 1795, mas o relacionamento acabou logo depois. Deprimida e arruinada, Mary foi tomada por uma desilusão tamanha que tentou se suicidar duas vezes. Esta fase de sofrimentos acabou sendo convertida em mais um processo de aprendizado e Mary assimilou muitas de suas dores como aspectos marcantes para a formação de suas ideias.

De volta à Inglaterra, ela conheceu o filósofo e anarquista William Godwin e depois de uma relação meramente intelectual acabaram se envolvendo emocional e sexualmente, “casando” em 1797. Como ambos tinham perspectivas muito renovadas a respeito da sociedade e das instituições, inclusive sobre o matrimônio, efetivaram uma convivência desafiadora para os padrões da época, pois cada um vivia em suas próprias casas durante um bom tempo e conviviam com base no respeito mútuo e condições plena igualdade, pois, assim como Mary, William também era defensor de princípios de liberdade que valorizavam os direitos femininos e a insubmissão ao poder masculino. O relacionamento do casal não foi apenas intelectualmente produtivo, tiveram no mesmo ano uma filha chamada Mary Wollstonecraft Godwin, que depois seria conhecida pelo seu nome de casada: Mary Shelley, a inovadora autora do clássico Frankenstein.

Seu primeiro livro foi “Pensamentos sobre a Educação das Filhas” (1787), trazendo uma abordagem educacional e moral sobre a educação feminina, mas ainda refletindo aspectos do pensamento convencional, embora já fizesse críticas pontuais. Em “A Vindicação dos Direitos do Homem” (1790) ela expôs sua qualidade como pensadora política em uma análise que criticava o conservadorismo. Sua obra mais importante foi “A Vindicação dos Direitos da Mulher” (1792), livro no qual afirmou a igualdade natural entre os gêneros e denunciou que as condições sociais das desigualdades eram consequências da submissão feminina e restrição à educação formal em condições equivalentes de acesso. “Maria, ou Os Erros da Mulher” (1798) é uma obra publicada postumamente, um romance que aborda a trajetória de uma mulher diante dos desafios sociais, intelectuais e emocionais até atingir a plenitude de sua liberdade, uma narrativa bastante inspirada em sua própria experiência.

Mary Wollstonecraft morreu aos 38 anos de idade em decorrência de complicações do parto, dias após o nascimento de Mary Shelley. Atordoado com a perda, William Godwin publicou “Memórias da Autora de A Vindicação dos Direitos da Mulher”, biografia de sua companheira como uma homenagem, mas a recepção imediata ao trabalho foi negativa, por causa dos julgamentos sobre Mary e sua “liberalidade” por parte do público, contrariando a intenção do viúvo de oferecer uma celebração a respeito de uma mulher independente e intelectual.

Atualmente Mary Wollstonecraft é ressaltada como uma das pioneiras do feminismo e da luta pela igualdade de gênero.

3 comentários

  1. […] As temáticas de sua produção eram variadas e ousadas, explorando enredos que mexiam em questões sensíveis para a sociedade da época. Na peça “The Rover” (1677) ela tratou da liberação feminina através de personagens consideradas escandalosas porque tratavam de maneira natural sobre sexo e posicionamento ativo na sociedade. Em “The Widow Ranter” (1690) ela retratou uma revolução política liderada por uma mulher comum que questionava o domínio colonial. A sexualidade era um aspecto recorrente em seu trabalho, uma expressão de suas próprias ideias e experiências, descrevendo de maneira clara sentimentos como desejo, prazer e frustração sexual, além de questionar as expectativas impostas às mulheres e a moralidade que celebravam a vivacidade sexual dos homens enquanto punia as mulheres pela mesma experiência. Seu trabalho que abordava sexualidade foi recepcionado pela crítica como libertino e indecente, contudo suas motivações eram claramente transformadoras porque ela defendia a educação das mulheres, o direito ao divórcio e ao exercício da liberdade à expressão sexual, temas que seriam retomados apenas no século XIX por autoras feministas como Mary Wollstonecraft. […]

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