Guy Fawkes e a Conspiração da Pólvora

(Representação visual gerada pela IA Midjourney)

Desde as reformas religiosas significativas implementadas durante o reinado de Henrique VIII, que resultaram na ruptura com a Igreja Católica Romana e na criação da Igreja da Inglaterra, de tendência protestante, a tensão religiosa no reino passou a ser grave e violenta. Sob o reinado de Elizabeth I, a filha de Henrique VIII, os católicos enfrentaram perseguição e penalidades severas por praticarem sua fé, o que gerou ressentimento e levou a um submundo de cultos e missas católicas secretas. A ascensão de Jaime I ao trono após a morte de Elizabeth trouxe esperanças iniciais de uma maior tolerância religiosa, já que sua mãe, Mary, Rainha dos Escoceses, era católica. Contudo, essas esperanças rapidamente se transformaram em frustração, pois o monarca manteve as leis restritivas contra os católicos, e em alguns aspectos, as tornou ainda mais severas. Esse ambiente de descontentamento e desespero por mudança foi fortalecendo a radicalização de alguns indivíduos, como Robert Catesby, que deflagrou a audaciosa e desastrosa Conspiração da Pólvora em 1605.

O objetivo do movimento era derrubar o governo inglês dominado por protestantes e assassinar o Rei Jaime I, para então substituí-lo por um monarca católico. Os conspiradores eram motivados por um profundo descontentamento com a repressão contínua aos católicos e o plano de ação era complexo e audacioso.

A primeira etapa da ação rebelde envolveu a coleta e o armazenamento de grandes quantidades de pólvora. Os conspiradores alugaram um porão que ficava sob a Casa dos Lordes, o coração do Parlamento inglês e pretendiam explodir o local numa ocasião em que o rei estivesse presente diante dos representantes da aristocracia britânica. A explosão seria o sinal para o início de uma revolta em todo o país durante a qual os conspiradores esperavam capturar a filha do rei, a Princesa Isabel, e instaurá-la como uma monarca católica fantoche. Os rebeldes esperavam que a morte do rei e a subsequente confusão criariam um vácuo de poder que permitiria aos conspiradores, com o apoio de simpatizantes católicos, assumir o controle do governo.

Eles também planejavam incitar o apoio da Espanha católica, esperando que a morte de Jaime I e a instabilidade subsequente pudessem ser usadas para forjar uma aliança com a potência católica europeia e, por fim, o objetivo a longo prazo era restaurar a fé católica como a religião oficial da Inglaterra, revertendo as reformas protestantes que haviam sido instituídas desde o reinado de Henrique VIII.

No entanto, o plano foi descoberto antes que pudesse ser executado, após a recepção de uma carta anônima que advertia um dos membros do Parlamento a se afastar do local numa data específica. Isso levou a uma busca e descoberta do conspirador Guy Fawkes no porão com os barris de pólvora, frustrando a conspiração antes que pudesse ser concretizada.

Guy Fawkes, nascido em York, Inglaterra, em 1570, era um soldado católico que serviu nas forças espanholas nos Países Baixos durante a Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648). Sua experiência militar, particularmente sua especialidade em explosivos, fizeram dele uma peça importante e estratégica para os conspiradores da Pólvora, que estavam desesperados para encontrar alguém com as habilidades técnicas necessárias para executar a parte mais perigosa de seu plano. Fawkes foi introduzido à conspiração por um dos líderes do grupo, Thomas Wintour, com quem ele já havia se encontrado na Espanha, onde supostamente discutiram o apoio espanhol para uma rebelião católica na Inglaterra. Fawkes assumiu o pseudônimo de “John Johnson” e conseguiu acesso ao porão sob o Parlamento, onde acumulou e guardou a pólvora que seria usada para realizar o atentado que acabou não ocorrendo.

Após o fracasso da iniciativa rebelde, o movimento católico clandestino na Inglaterra sofreu um duro golpe. O estado de alerta das autoridades aumentou significativamente, e a repressão contra os católicos se intensificou. Os conspiradores sobreviventes foram perseguidos e capturados; muitos enfrentaram julgamentos sumários e foram executados, servindo de exemplo para desencorajar futuras sedições.

Guy Fawkes, capturado antes que pudesse acender o pavio que detonaria os barris de pólvora sob o Parlamento, foi submetido a tortura na Torre de Londres, onde, mesmo resistindo inicialmente, acabou por revelar os detalhes da conspiração e seus cúmplices. Em janeiro de 1606, Fawkes e os outros conspiradores foram julgados e condenados por alta traição. Suas execuções foram marcadas por extrema brutalidade, pois a sentença previa o esquartejamento e evisceração dos condenados ainda vivos antes do golpe final da decapitação. Consciente de seu final insuportável diante do público, Fawkes conseguiu pular do cadafalso enquanto tinha uma corda amarrada em volta do pescoço, resultando em sua morte pela quebra do pescoço, evitando a tortura final prevista.  

A frustração da Conspiração da Pólvora também teve o efeito de diminuir a simpatia pela causa católica entre a população em geral, que via os conspiradores não como mártires religiosos, mas como traidores. O governo aproveitou o incidente para justificar a imposição de leis ainda mais severas contra os católicos, solidificando a hegemonia protestante e estigmatizando o catolicismo por gerações. O 5 de novembro, data em que o plano foi descoberto, foi instituído como um dia de celebração nacional, marcado por fogueiras e queima de fogos de artifício, simbolizando a vitória sobre a traição e a heresia. Isso perpetuou a memória do evento e a condenação do catolicismo como uma ameaça ao Estado inglês.

A Conspiração da Pólvora permanece um episódio significativo na história britânica, simbolizando as profundas divisões religiosas e políticas da época e marcando a perpetuação do poder protestante na Inglaterra. A tentativa fracassada de derrubar o governo e assassinar o rei Jaime I é frequentemente vista como um ponto de inflexão, após o qual a monarquia consolidou seu controle e impôs um maior rigor no tratamento de dissidências religiosas. No entanto, a figura de Guy Fawkes transcendeu muito tempo depois de seu papel original de vilão traidor para se tornar num ícone de resistência e rebeldia. A imagem do conspirador explosivo, especialmente a máscara popularizada por “V de Vingança”, graphic novel escrita por Alan Moore e ilustrada por David Lloyd e pelo filme baseado na obra, tornou-se um símbolo global para movimentos que contestam padrões estabelecidos, protestos e o anseio por mudança política e social.

A situação religiosa na Inglaterra e a aceitação dos católicos passaram por uma longa e gradual transformação. Nos séculos que se seguiram à conspiração malsucedida, a perseguição aos católicos continuou, com momentos de alívio esporádicos, mas foi somente no século XIX que reformas significativas começaram a ser implementadas. A Lei de Emancipação Católica (1829) foi um marco, pois permitiu aos católicos a possibilidade de possuir terras, ingressar em muitas profissões e, mais significativamente, ocupar a maioria dos cargos públicos. Ao longo do tempo, o ecumenismo e uma maior tolerância religiosa se desenvolveram, especialmente após o Segundo Concílio do Vaticano na década de 1960, que melhorou as relações entre a Igreja Católica e a Igreja Anglicana. No cenário contemporâneo, a Inglaterra é caracterizada por uma ampla liberdade religiosa e uma sociedade cada vez mais pluralista.

Recorte da HQ “V de Vingança”