O navio negreiro Zong e a trágica expedição da morte

(Representação visual gerada pela IA Leonardo)

O processo de transporte de escravos durante a terrível era da escravidão atlântica fazia parte de todo o terror daquele contexto horrendo de exploração. Os responsáveis por esse transporte empregavam os infames navios negreiros, embarcações de carga que acondicionavam seres humanos nas piores condições imagináveis. Frequentemente presos em espaços muito limitados pela superlotação, os escravos cruzavam o oceano em péssimas condições sanitárias, precárias condições de ambiente para a respiração e para suportar a temperatura, estando ainda acorrentados e recebendo alimentação insuficiente. A viagem torturante durava semanas, sendo uma provação física extrema conseguir chegar ao destino, e mesmo os transportadores e agentes do comércio de escravos já contavam com inevitáveis mortes no percurso.

Uma das incontáveis travessias da escravidão foi a infeliz viagem do navio negreiro Zong, ocorrida em 1781, que se tornou infame pelo ato de crueldade extrema.

A embarcação de fabricação holandesa, adquirida por uma companhia britânica, operava regularmente como navio negreiro. Em 6 de setembro de 1781, partiu da costa africana para mais uma viagem, carregando no embarque 472 escravos com destino à Jamaica. Pelo porte do navio, essa quantidade de gente já se configurava como excessiva. O comando do Zong estava a cargo do capitão Luke Collingwood. Mesmo antes de finalmente cruzar o Oceano Atlântico, o navio já mantinha alguns desses escravos em seu interior durante meses, pois foram adquiridos em transações anteriores e continuavam aprisionados à espera da travessia enquanto outros eram negociados para compor a carga humana até viabilizar economicamente a expedição. Por má sorte ou imperícia do capitão, o navio acabou em uma zona de marasmo oceânico e, sem vento e correnteza, ficou parado, prolongando ainda mais a lenta e desgastante viagem. A essas alturas, o Zong já havia sido tocado pela tragédia, pois uma onda de doenças matou 17 tripulantes e mais de 50 africanos. Com as provisões no fim ou praticamente deterioradas, finalmente, em 29 de novembro, surgiu a decisão extrema e sinistra de livrar o navio de sua carga, isto é, dos escravos arruinados pela fome e desgaste físico e mental. A tripulação do navio negreiro iniciou o “descarte” a partir de mulheres e crianças, jogadas no mar ainda presas por correntes ou cordas. Depois, os homens tiveram o mesmo destino, indo parar nas profundezas das águas oceânicas. 133 pessoas foram assassinadas no episódio conhecido como o Massacre de Zong.

O navio finalmente entrou em movimento na semana seguinte e acabou desembarcando na Jamaica com 208 africanos arruinados, doentes e incapacitados para qualquer serviço. Mas o aspecto desumano da viagem sequer foi considerado o pior desfecho da travessia do Zong por James Gregson, proprietário do navio, que ficou realmente incomodado com o prejuízo material, pois, além de perder muitos escravos no trajeto, não obteve um bom preço negociando os moribundos que conseguiram ser desembarcados. O caso acabou indo parar nas instâncias legais em busca de indenização e cobertura dos danos pelo seguro.

Gregson processou o capitão, justificando que a falta de água potável e outros erros em sua condução do navio acarretaram a perda da carga, requerendo que o seguro garantisse seu investimento desperdiçado. A justiça jamaicana foi favorável ao pedido do proprietário, mas a seguradora recorreu nas instâncias do tribunal na Inglaterra. O caso repercutiu na sociedade porque os abolicionistas trataram de denunciar publicamente a situação absurda dos assassinatos a bordo, mas o caráter criminal não foi aceito no julgamento porque prevaleceu a alegação de que os africanos eram mera carga e não pessoas, chegando mesmo a ser equiparados a um carregamento de madeira que eventualmente precisa ser descartado para aliviar o peso do navio. Assim, ninguém respondeu por qualquer homicídio durante o processo judicial, que foi tratado como um incidente próprio dos negócios mercantis.

Apesar do não reconhecimento dos 133 assassinatos, a polêmica do Massacre de Zong reforçou a causa abolicionista entre os ingleses, porque o escândalo convenceu muitas pessoas de que, enfim, a escravidão era uma prática imoral e desumana.

3 comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados *