Hematofagia e canibalismo medicinal na Europa Moderna

Representação visual gerada pela IA Midjourney

A ideia de recorrer ao aproveitamento de órgãos e sangue de outras pessoas para fins medicinais não é nenhum absurdo atualmente, afinal, transplantes e transfusões são procedimentos que salvam vidas e campanhas que promovem a conscientização sobre o ato de doação são sempre necessárias. Mas um outro uso medicinal de resíduos e restos corporais humanos teve outro tipo de impacto quando europeus endinheirados começaram a praticar estranhas abordagens de canibalismo medicinal nos séculos 16 e 17.

O consumo de sangue “in natura” não era coisa só para vampiros pálidos e noturnos, curandeiros antigos recomendavam sangue para recompor a vitalidade e curar doenças, nos tempos romanos já achavam que o líquido ajudava a curar condições como a epilepsia e há registros de gente saltando sobre corpos mortos ou moribundos de gladiadores ensanguentados após as lutas para sorver o líquido vital desses infelizes derrotados nas arenas. Entre os europeus em plena Idade Moderna ocorria a ideia de que o consumo de sangue fresco era saudável e mesmo o gênio suíço Paracelsus (Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, 1494-1541), inovador cientista renascentista, defendia que um golinho de sangue era ótimo para curar e prevenir males, embora não fosse necessário coletar o fluido de um cadáver, pois o consumo do sangue de fornecedores vivos era ainda melhor. Numa época de fartura de execuções públicas com métodos de carnificina não era raro que os expectadores dos espetáculos da justiça sangrenta aproveitassem as oportunidades em que condenados eram decepados para coletar algumas doses de sangue despejado. Surgiram várias técnicas e prescrições medonhas para o uso medicinal de sangue humano, muitas delas se baseavam na lógica de que se a perda ou enfraquecimento de sangue debilita a pessoa, a ingestão de mais sangue proporciona o efeito inverso, logo, a hematofagia era saudável. O médico italiano Marsilio Ficino até afirmava nos idos do século 15 que pessoas velhas deveriam contar com doses de sangue de jovens em suas dietas.

Os “remédios de cadáveres” não tinham apenas a apresentação líquida. Outros ingredientes mórbidos também compunham a panaceia canibal. Novamente Paracelsus, que revelou conhecimentos fundamentais para o avanço da medicina, também tinha suas teses obscuras e achava que pedaços de crânio era um remédio para moléstias da cabeça e concluiu que a melhor matéria-prima para este tratamento era obtida por meio de indivíduos mortos violentamente, a exemplo dos condenados que eram executados – que eram naturalmente uma ótima fonte para extração de sangue também. O doutor Jonathan Goddard (1617-1665), cirurgião inglês acostumado a lidar com vítimas de guerras, teorizava sobre os benefícios de crânios esmagados de vítimas de mortes violentas para tratamentos de epiléticos e de outros pacientes com moléstias neurológicas. A predileção por gente que morreria em condições violentas se justificava pelo fato de que as causas das mortes não eram moléstia que eventualmente teriam estragado a matéria-prima do tratamento e os condenados à morte cumpriam um requisito adicional, pois eram indivíduos que não mereceriam o respeito de um tratamento funerário que poupasse seus restos, que poderiam ser utilizados em experimentos médicos.

Os mais sinistros preparos feitos a partir de restos humanos eram consumidos para diversos fins e de formas estranhas e perturbadoras. Na Irlanda as divergências mais sérias e dramáticas terminavam com oponentes assassinados e com suas cabeças decepadas que não eram enterradas com o corpo, então existia aqui ou acolá algum crânio insepulto e vulnerável à ação dos elementos da natureza, então havia quem “garimpasse” algum crânio desses para obter material utilizado para preparar medicamentos e nessa coleta era possível inclusive conseguir um recurso inusitado que era o musgo que brotava nessas cabeças descarnadas. O musgo de caveira e os ossos triturados até virarem pó encontrados nesta condição em particular compunham um valioso ingrediente para preparar uma gororoba que ficou conhecida como “King’s Drops” (“Gotas do Rei”) por causa de seu mais notório consumidor, Charles II (1630-1685), rei da Inglaterra, Escócia e Irlanda. O remédio que servia “para tudo” era vendido para um público disposto a pagar caro pela mistura.

Outro ingrediente para poucos era obtido de múmias contrabandeadas do Egito. Achava-se que restos cadavéricos antigos podiam gerar bons resultados medicinais, então das cabeças e cavidades abdominais desses defuntos ressecados eram retiradas lascas raspadas que depois de trituradas poderiam ser misturadas com ervas ou mesmo colocadas em uma taça de vinho e então ministradas aos pacientes.

Vendedor de múmia, Egito, 1875

Uma compreensão científica mais avançada foi importante para superar a prática médica de utilizar restos humanos como fonte para extração de material para preparação medicamentos que poderiam até causar doenças.  

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