Sporus, o escravo eunuco que virou imperatriz de Roma

Representação visual gerada pela IA Midjourney

A escravidão é cruel em qualquer tempo e forma. A exploração não tinha finalidade exclusivamente voltada para obter da pessoa escravizada sua força e destreza para e realização de trabalho para a produção ou mesmo para o conforto dos senhores. Escravos também eram explorados para saciar desejos luxuriosos de quem mantinha pessoas cativas para este fim específico e esta era a condição especial do puer delicatus, do escravo catamita (catamitus), menino pré-adolescente ou adolescente que era explorado para fins sexuais passivos como amante de um homem mais velho. Era comum que homens em posições de poder tivessem catamitos e a literatura latina possui diversos registros sobre essa prática de exploração humana floreadas por manifestações sentimentais. Alguns desses escravos chegaram a ser castrados para prolongar seus atributos atrativos.

Um catamito em particular chegou à condição peculiar de imperatriz de Roma, pois casou-se com o infame Nero (Nero Claudius Cæsar Augustus Germanicus). Seu nome era Sporus e aspectos de sua vida prévios ao encontro com o imperador (inclusive seu eventual nome verdadeiro) são desconhecidos.

Nero era um abusador perverso reconhecido, tendo citações de adultério rotineiro, sedução de mulheres casadas, pederastia, agressões, estupros (inclusive a pecaminosa violação de uma vestal, sacerdotisa sagrada da deusa Vesta) e práticas sexuais incestuosas com a própria mãe, a quem mandou matar, segundo especulações, por se opor ao seu casamento com Sabina, sua segunda esposa.

Nero casou-se pela primeira vez com a nobre Claudia Octavia, moça de linhagem imperial (sobrinha-neta do imperador Tibério, prima do imperador Calígula e filha do imperador Cláudio e da imperatriz Valeria Messalina) e admirada pelos romanos, mas o casamento foi infeliz, violento e então desfeito quando o imperador a trocou por sua amante Poppaea Sabina. O fim do casamento, no ano 61, jogou a população contra o imperador, mas Claudia morreu em condições estranhas enquanto estava banida – ela teve as veias cortadas num aparente suicídio e depois sua cabeça foi enviada para Sabina como “presente”. Nero casou-se com Sabina poucos dias depois de se separar de Claudia e sua segunda esposa já estava grávida na ocasião. Ela chegou a ser casada como Otho (que tornou-se o segundo sucessor de Nero, assumindo o Império brevemente até se suicidar em 69, ano tumultuado em que Roma teve 4 ocupantes do trono), mas o casamento foi desfeito quando ela começou a se relacionar com imperador. Sabina não tinha a melhor das reputações e era dito que teria se casado com Otho apenas para se aproximar de Nero, pois os dois nobres eram muito amigos e tinham bastante convivência pessoal e, além disso, existiam alegações de que realizava práticas religiosas divergentes da tradição nobiliárquica romana. De qualquer forma o casamento também não foi duradouro e mais uma vez apontasse contra Nero o desfecho infeliz. Conta-se que no ano 65, durante uma discussão, o imperador espancou a esposa que estava grávida pela segunda vez (perdeu a primeira filha após apenas 4 meses do nascimento) e em decorrência das pancadas ela acabou morrendo.

O episódio trágico teria abalado o imperador, que ficou perturbado pela culpa. Mas isso não deve ter durado muito e voltou cedo às suas práticas malfaladas, apesar de casar-se novamente em 66, dessa vez com Statilia Messalina, mas a união durou pouco porque ele enfim acabou se deparando o jovem Sporus enquanto andava por um mercado em Roma. Nero viu no menino as feições de Sabina, então resolveu se apossar dele e ordenou que fosse castrado. Foi o soberano romano que lhe atribuiu a nova identidade como Sporus (que significa “Semente”), uma forma de zombaria por causa da incapacidade agora adquirida do moço de se reproduzir, mas ele também chamava o seu catamito de Sabina por causa da semelhança com a sua esposa que assassinou. Nero decidiu casar-se com Sporus em um ato público em 67, anunciando que o jovem era sua mulher. Sporus agora se vestia como uma legítima imperatriz e contava com uma camareira especialmente designada para assegurar que o visual estivesse nos conformes da etiqueta social e alinhamento estético das refinadas senhoras da alta elite romana. Publicamente o imperador não resguardava as demonstrações de afeto para sua nova cônjuge, mas, apesar de ser evidenciado como esposa de Nero, Sporus não tinha autoridade de uma imperatriz convencional e o fato de ser um catamito eunuco de procedência escrava afetava bastante essa condição. Além disso, a rejeição a Sporus era evidente e comumente era assunto nas fofocas e difamações nos corredores do poder e ruas de Roma e a impopularidade de Nero também não ajudava a amenizar a posição de Sporus.

Um curioso episódio do casamento entre Nero e Sporus é o discutido presente dado pela esposa ao seu marido imperial no ano novo de 68: um belo anel com representações alusivas ao mito grego de Perséfone e Hades. Conforme a famosa narrativa mitológica, Perséfone era uma jovem inocente que foi capturada e violada pelo Senhor do Submundo, sendo depois mantida ao seu lado como esposa nos sombrios domínios Hades. Seria uma indireta ou um presságio? O fato é que Nero mal chegaria à metade do ano.

Nero caiu em desgraça não por culpa de Sporus, mas por ser um péssimo governante. Fato evidenciado quanto o Senado, farto de seus abusos e incompetência, resolveu declarar o imperador inimigo público oficialmente. Nero viu-se obrigado a fugir da insurreição, mas sabia que não teria onde se esconder. O desfecho é bem conhecido: ele acabou ordenando que um serviçal próximo cortasse sua garganta para evitar cair nas mãos de seus inimigos.    A viúva Sporus também acabou sendo arrastada para o turbilhão da queda de Nero. Ele ficou brevemente sob os cuidados do pretoriano Nymphidius Sabinus, que também fez do catamito sua esposa até que o militar morreu no contexto das rebeliões políticas, pois tentou ser coroado imperador. Daí então Otho (Marcus Salvius Otho), o ex-amigo de Nero que foi traído e perdeu sua esposa, assumiu o império e a propriedade de Sporus por apenas 3 meses até se matar, ocasião em que Aulus Vitellius Germanicus foi declarado imperador pelo Senado. Vitellius não tinha nenhuma intenção de proteger Sporus e planejou utilizar o rapaz em uma exibição vexatória num espetáculo em que representaria a Perséfone violada e raptada por Hades para a diversão dos expectadores. Depois de todas as experiências vivenciadas em menos de 20 anos de existência, Sporus decidiu se matar para evitar a humilhação pública.