François Vatel, um mártir da alta gastronomia

(Representação visual gerada pelas IAs Midjourney e leonardo)

A alta gastronomia com seus preparos sofisticados, ingredientes refinados e chefs prestigiados tem como uma referência histórica François Vatel no século XVII. Existem poucas e não muito confiáveis informações sobre parte de sua vida, então não se sabe exatamente onde ou quando ele nasceu, pois ele pode ter origens na França ou na Suíça e nasceu entre 1625 e 1635. O início de sua carreira gastronômica também não é conhecido por causa escassez de fontes. Quando Vatel “surge” na história ele já era um cozinheiro a serviço do nobre Nicolas Fouquet, quando atuava como superintendente das finanças do Rei Luís XIV da França.

Fouquet, seu empregador, era conhecido por seu estilo de vida opulento e de exagerada ostentação no château em Vaux-le-Vicomte, propriedade de luxuosidade tamanha que ofuscava o próprio Palácio de Versalhes. Em 17 de agosto de 1661 a monumental residência de Fouquet foi aberta para a elite francesa em um evento luxuoso no qual o rei era o convidado de honra. Com os salões e jardins ornamentados e repletos de convidados ilustres e poderosos que eram entretidos por música, dança e teatro, mesas com banquetes e bebidas estavam a disposição das pessoas, que se deleitavam com o que havia de melhor para comer e beber. O planejamento, a supervisão e execução das maravilhas gastronômicas servidas na festa, além do atendimento dos garçons, sommeliers e demais serviçais envolvidos no evento, ficaram por conta de Vatel, que cuidou de cada detalhe com perfeccionismo e rigor na qualidade. Luís XIV ficou tão impressionado com tudo que isso virou um problema sério para o anfitrião, pois o rei viu Vaux-le-Vicomte e a capacidade de gastos de seu subordinado como preocupantes demonstrações de poder – dizem até que o monarca foi tomado por certa inveja de Fouquet. O sucesso virou a ruída do nobre, que depois foi vítima de uma conspiração, respondendo por corrupção.

A festa de Fouquet ajudou a projetar a fama e o prestígio de seu maître d’hôtel, profissional responsável pela administração dos serviços de hospitalidade. Não faltaram oportunidade para Vatel depois da queda de seu antigo patrão e assim ele logo foi parar em outro ambiente requintado, trabalhando para o príncipe Louis II de Bourbon-Condé no Palácio de Chantilly. A meticulosidade de sua atuação continuou como marca da atuação de Vatel, que comandou diversos eventos para a nobreza francesa e para convidados estrangeiros que passavam pelo palácio. Contar com um profissional deste nível era também ótimo para o empregador, pois incrementava seu reconhecimento como anfitrião, então o Grande Condé, como era conhecido o primo do rei, se favorecia da excelência do serviço de hospitalidade e gastronomia prestado em seu château.

Para os eventos gastronômicos que coordenava, Vatel gostava de inovar ao apresentar receitas surpreendentes, preparos diferentes e apresentações dos pratos com verdadeiro esmero artístico, ele potencializava os ingredientes sazonais para proporcionar sensações gustativas marcantes e selecionava com rigor cada item que entrava em sua cozinha. Seu controle absoluto sobre os processos culinários e providências além da cozinha consumiam seus dias e mobilizavam até suas emoções, o que acabou assumindo um caráter trágico.

Em abril de 1671 o Château de Chantilly receberia o rei em um banquete festivo e o monarca também ficaria hospedado na propriedade. Para um homem detalhista e obcecado por rigores como Vatel, todas as circunstâncias que cercavam os preparativos para o evento passaram a ocupar intensamente sua mente perfeccionista. Horários, procedimentos e materiais foram meticulosamente planejados, mas no dia da chegada do rei e da realização do banquete os contratempos surgiram. O espetáculo de fogos de artifícios que ele concebeu e contratou não poderia ser executado por causa do mau tempo, mas o pior de tudo para ele foi a a falta de um item indispensável para seu prato principal, pois ele recebeu uma quantidade insuficiente do peixe que seria servido e concluiu que o restante da encomenda não chegaria. Esta seria uma falha imperdoável para Vatel, que não conseguiu lidar com a frustração e com a eventual mácula em sua honra e reputação. Tomado por um desespero extremo, o maître d’hôtel resolveu adotar uma medida radical diante da possibilidade do fracasso: ele foi até seus aposentos e se matou usando a própria espada. Seu sacrifício em nome da honra e do serviço acabou sendo ainda mais dramático quando, em seguida, os peixes prometidos pelo fornecedor finalmente chegaram a tempo para que pudessem ser preparados e servidos.


Referências: