Elena ou Eleno de Céspedes: Rompendo barreiras de gênero no século XVI

(Representação visual gerada pela IA Leonardo)

A espanhola Elena de Céspedes, provavelmente nascida em 1545, viveu uma experiência incrível para alguém do início da Idade Moderna. Ela era filha de uma mulher negra, Francisca de Medina, moura escravizada, que engravidou após uma relação com o seu senhor, um proprietário de terras cuja identificação exata não está devidamente esclarecida. Ela recebeu uma marca física indicando sua condição de escrava e não tinha um nome definido até adotar o nome de sua então proprietária (possivelmente esposa legítima de seu pai) quando esta faleceu. Elena casou-se aos 15 ou 16 anos com um homem chamado Cristóbal Lombardo e foi abandonada durante a gravidez. Após o nascimento da criança, entregou-a para uma família e partiu tentando a vida longe de Alhama de Granada, sua terra natal.

Elena só percebeu diferenças marcantes em seu corpo durante a gravidez. Especula-se que ela era intersexual, condição de quem nasce com características sexuais que não se encaixam nas categorias típicas, podendo apresentar órgãos genitais, cromossomos ou características sexuais secundárias que não são estritamente masculinas ou femininas. No passado, essa condição era comumente referida como hermafrodita.

Após deixar Alhama de Granada, Elena enfrentou diversas adversidades. Conseguiu empregos temporários como costureira em diferentes lugares e começou a se apresentar apenas como Céspedes (sem o primeiro nome feminino). Envolveu-se em um conflito com um indivíduo chamado Heredia, que era supostamente cafetão, e o atacou com uma faca, sendo por isso detida.

Agora vamos nos reportar a uma outra fase de sua vida e uma outra face de sua personalidade complexa, pois depois desse incidente resolveu adotar a identidade masculina, passando a se apresentar como Eleno de Céspedes e a vestir roupas de homem.

Mudou de localidade, tornou-se trabalhador rural, mas foi denunciado por um conhecido. Eleno precisou fugir novamente para não ser obrigado a reassumir sua identidade feminina, condição imposta pelas autoridades para evitar sua prisão. Alistou-se para o serviço militar e lutou na Revolta Mourisca, que ocorreu de 1568 a 1571.

Após três anos como soldado, trabalhou como alfaiate e, em 1575, foi para Madri. Lá, fez amizade com um cirurgião que despertou seu interesse pela medicina. Alfabetizado em espanhol e latim de maneira autodidata, Eleno aprofundou-se nos estudos sobre cirurgia e anatomia. Logo estava realizando procedimentos ao lado de profissionais experientes, mas, após oito anos, foi denunciado por não possuir licença profissional. Contudo, superou esse obstáculo ao conseguir sua licença após passar por um rigoroso exame, mesmo sem educação formal.

Durante sua prática médica, Eleno apaixonou-se por María del Caño e decidiram casar-se. Antes disso, teve diversos relacionamentos com mulheres. Uma delas tentou impedir o casamento, alegando ser sua esposa. Porém, o maior desafio foi a desconfiança do padre que, devido à aparência andrógina de Eleno, solicitou uma inspeção para confirmar sua masculinidade. A junta que o examinou atestou que possuía um pênis, apesar de algumas peculiaridades anatômicas e de relatos que afirmavam sua intersexualidade.

Apesar de sua condição ser reconhecida e até respeitada por muitos, o casamento incomodou aqueles que não aceitavam sua natureza. Um vizinho recorreu à sanguinária Inquisição Espanhola, acusando o casal de sodomia. Novos exames foram feitos, e desta vez, concluíram que Eleno era mulher. Acusado de feitiçaria, de se passar por homem e de zombar do sacramento matrimonial, defendeu-se alegando ser intersexual com desejos e condutas masculinas.

Durante o julgamento, foi referido pelo nome feminino, sinalizando a tendência condenatória que se confirmou. Foi condenado a 200 chibatadas, teve o casamento anulado e foi ordenado a reassumir sua identidade feminina, sendo chamado de Elena. Ainda teve que desfilar em humilhação pública pelas ruas de Toledo e cumprir 10 anos de serviço forçado em um hospital.

Não há mais registros sobre Eleno/Elena após 1589, quando houve uma última menção sobre sua transferência hospitalar.

A vida de Céspedes é notável e repleta de reviravoltas. Nascido na escravidão, ascendeu profissionalmente e desafiou padrões sociais, culturais e sexuais. Como nos registros oficiais de seu julgamento prevalece a insistência por parte das autoridades instituídas no tratamento feminino, então a acusação instituiu um destaque desbravador: como Elena, foi a primeira mulher reconhecida cirurgiã na Espanha.


No texto Uma vida dividida: Thomas(ine) Hall e a intersexualidade no século XVII há outra incrível história relacionada à complexidade da definição da identidade de uma pessoa intersexo.

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